segunda-feira, 29 de julho de 2013

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «Bendita seja a hora em que te vi, e esta noite de encanto e inspiração. És da vida e da terra, como eu sou. Todo o meu ser humano te conhece: meu ser que já teu vulto enevoou, enquanto foste nuvem ilusória»

jdact

Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
Eu sou aquela
nuvem que teu espírito derrama
sobre o mundo, que a sente, como a estrela
sente, de longe, os olhos que a contemplam.

Eu sou a tua alma aparecida,
criatura imortal da tua dor!
E vivo, como tu, mas outra vida,
e choro, como tu, mas outras lágrimas...

Um mistério me encobre, e faz de mim
a sombra que te empece...
Muito em breve,
tu saberás, Marãnus, porque vim
à tua soledade...

E, na penumbra,
tinha um alto relevo musical
a ignota Aparição que, nestes versos,
é como fria imagem sepulcral.

Marânus ajoelhando, fervoroso,
pendeu a fronte ardente sobre o peito
e algum tempo ficou silencioso,
e não ousava olhá-la, face a face.
Na merencória palidez do céu,
desabrochavam lírios espectrais...
A luz da lua nova era uma aragem
de sonho, sobre a rama dos pinhais...
Eram de sonho as pedras; e de sonho.

A terra onde Marânus ajoelhou.
Ele mesmo ela sonho, e a linda noite
e essa estranha mulher que lhe falou.
E respondeu, inquieto e entontecido,
como afogado em ondas de emoção.

Indefinido amor desconhecido,
um sobressalto, vago e interior,
há muito tempo já, me perturbava.
E, ansioso, tentava definir
essa dispersa luz, que me doirava
de inefável tristeza madrugante.
E chorava, e cismava, e assim dizia.
Sombra que eternamente me persegues,
ilumina-te de íntima alegria
e dissipa-me as trevas deste mundo!
Ó Sombra, toma corpo e carne viva,
ressurge, à luz do sol! Eu quero ver-te!
E a minha voz, exausta e fugitiva,
caía-me nos lábios, quase morta.

Mas tu vieste, amor, se, por acaso,
pertences a esta vida; se não és
um fumo deste incêndio em que me abraso,
uma chama irreal do meu delírio…

Eu sou a tua eleita, a Virgem Pura.
E vim rasgar as névoas, desvendar
esse antigo segredo da Natura
e o sagrado mistério da tua raça.

E Marânus, num súbito alvoroço,
falou, como quem reza uma oração.

Bendita seja a hora em que te vi,
e esta noite de encanto e inspiração.

És da vida e da terra, como eu sou.
Todo o meu ser humano te conhece:
meu ser que já teu vulto enevoou,
enquanto foste nuvem ilusória.
Agora, és a verdade, a luz divina.
E a bruma, que meus olhos abafava,
condensou-se na forma cristalina,
irradiante e bela do teu corpo.

Vejo nascer doirada madrugada,
uma alegria etérea e criadora,
ó minha alma triste e naufragada
na fundura oceânica das lágrimas!

Renasce a luz! Renasce! Vejo, enfim!
Já vejo o claro dia! A cada instante,
sinto-te, minha Deusa, ao pé de mim.
Bafeja-me o teu hálito celeste.

Num movimento, cego e inconsciente,
Marânus levantou-se. E, comovido,
tentou beijar-lhe a face, mas somente
beijou a poeira branca do luar...
E, em mais perfeita e nítida harmonia,
logo a sua figura se desenha
na levíssima sombra, que descia
das nuvens, todas cheias dum sorriso.
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT