sábado, 13 de julho de 2013

Ensaios Políticos. A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História? Eduardo Lourenço. «’Mon Désir’, diziam reis renascentistas como critério supremo e único de ‘liberdade’ que de valor referem e a cultura de esquerda passou a ser cobertura do liberalismo económico, para quem a liberdade é de conquistar para si o exclusivo de um mercado»

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«(…) É uma herança da esquerda europeia sempre que não ocupou ou foi poder, é uma ideia de cultura enquanto humanista como instância nobre, reguladora, espaço idealizado de aventura humana que na sua realidade mais trivial é atroz e sem cura. Mas não é sob esta figura de cultura, enquanto expressão de uma racionalidade que por si mesma seria factor de equilíbrio, de ordem, de justiça, etc. que o combate pelo Socialismo pode hoje ser travado quando o liberalismo como cultura tem a audácia de convocar a mais alta tradição crítica do Ocidente para a ajudar a vender os seus produtos, tal como domesticou a prática subversiva da arte moderna assimilando-a a títulos da bolsa mais rendosos e mais e mais nobres do que eles. Mercedes-Benz, parece que nem precisaria, mas é um facto, convoca as sombras de Leibniz- de Espinosa ou de Descartes para sobrevender os seus aliás maravilhosos produtos, que eu não me posso pagar com luxos de socialista do possível, como a imprensa que ecoa essa euforia liberal se autoproclama inteligente como Einstein, e do seu ponto de vista, tirando a pretensão, talvez o seja. O que é possível fazer para preparar um futuro socialista neste instante em que um mensário intitulado Liberal confessa extático e feliz que, para as nossas gerações realistas, filhos do seu tempo, Wall Street substitui Katmandu? Os novos lemas são: ganhar, avançar, ser o actor de uma performance como afirmação da plenitude de si, indiferente a qualquer transcendência, em uníssono com o produto sofisticado que justifica e alimenta o fluxo sem suspeita da produtividade capitalista, enfim liberto dos fantasmas repressores, ascéticos, herdados de vários séculos de judeo-cristianismo. Mon Désir, diziam reis renascentistas como critério supremo e único de liberdade que de valor referem e a cultura de esquerda passou a ser cobertura do liberalismo económico, para quem a liberdade é de conquistar para si o exclusivo de um mercado. A cultura liberal reivindica mesmo a antiga subversão, a revolta situacionista ou de Maio 68 contra a ordem do capitalismo ocidental, como expressão da liberdade individual de independência de que hoje devem fazer gala os empreendedores, vendedores, criativos, etc. O mesmo Liberal regozija-se com o nascimento deste novo espaço de prazer e de liberdade, tão outro que o tempo dos grandes pânicos dos anos 60 diante do desenvolvimento anárquico da produção, com a apologia do crescimento zero pelo Clube de Roma, temor do apocalipse nuclear, etc.
O instante ocidental está cheio como um ovo do gozo do seu sucesso. Um signo entre outros: em plena agitação estudantil em França no Outono de 86, uma famosa marca de luxo manteve o seu congresso em La Villette e anunciava 60 milhões de francos de benefícios. No futuro? O futuro é aqui...
A situação particular nossa, o facto de que, enquanto expressão política, o projecto socialista em Portugal seja vivido com um optimismo que embora não seja e não possa ser o de Sérgio, é mais difícil de assumir na restante Europa, torna menos deprimente esta euforia ocidental de neoliberalismo. Mas seria de uma cegueira culposa não perceber que esse neoliberalismo e a cultura que o exprime ou que por sua vez o justifica no plano da polémica ou da publicidade, são mais uns dos meus fantasmas de estrangeirado à força.
Para ter futuro, não como mera expressão na ordem política-democrática, o Socialismo terá como obrigação primeira reinventar um novo discurso cultural, revisitar seriamente o seu imaginário que ainda o protege aparentemente do fascínio do discurso pseudoliberal. Não é tarefa de eleitos, mas de todos que sabem, sem ser de ciência certa, que há na ideia e no projecto socialista uma exigência, uma verdade que nem a mais gritante eficácia do ultracapitalismo planetário consegue ocultar. Debaixo das pedras da calçada, a praia, diziam os estudantes de 68. Debaixo da fachada rutilante de uma sociedade que exclui e remete para o nada social uma fracção inumerável da comunidade humana não descobrimos praia nenhuma, só o espectáculo de uma sociedade dividida entre a euforia dos conquistadores new look e as suas vítimas, mesmo os que recebem desse universo rutilante algumas migalhas de sonho que lhes permitem imaginar que estão ainda dentro do ninho iluminado.
Para os que acham meramente ética esta constatação, não tenho resposta a dar. O Socialismo ou é ética social em acto ou não é nada. Estou certo de pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o Socialismo ou se alimenta dessa convicção, e das consequências práticas que dela relevam, ou se converterá numa legenda sem leitura e sem leitores». In Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, Ensaios Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.

Cortesia de Gradiva/JDACT