sábado, 6 de julho de 2013

A Varanda de Natércia. Literatura. Alberto Pimentel. «Chegou finalmente a côrte, as donzellinhas mimosas de fino trato palaciano poderam mirar o bello rosto no claro espelho do Mondego, o rei João III pôde conversar os sábios extrangeiros que preleccionavam nos paços das Alcáçovas»

jdact

«Correu voz era Coimbra de que el-rei João III e sua esposa a rainha D. Catharina d’Austria iriam passar ali as solemnidades da semana santa. N’aquelle tempo, a côrte portugueza mobilisava-se ao sabor da phantasia real, quando não ia fugindo de medrosa adeante das grandes epidemias devastadoras. Mas d’esta vez era o rei que a bel-prazer promovia a excursão, n'uma época piedosa, á piedosa.

Cidade rica do santo
Corpo do seu rei primeiro (in Sá de Miranda)

Aproveitando simultaneamente o ensejo de por seus próprios olhos verificar os progressos das escolas geraes, que procurara engrandecer, e que por sua ordem haviam sido transferidas a Coimbra na primavera de 1537. Estava-se no mez de Abril, o sol havia entrado no signo de Tauro, Flora entornava por sobre os campos do Mondego os variegados matizes da sua cornucopia vernal. Era sazão de geito para desenfades bucólicos, e se alguma coisa podéra extranhar-se seria que o animo sombrio do rei não se molestasse com o espectaculo das chilreadas alegrias da natureza, tão gratas aos corações felizes, não ao d'elle, que desde o primeiro amor ficara profundamente ferido.
De feito, o mordomo-mór Fernando Faro confirmou pela sua chegada a Coimbra o boato de que a corte se não faria esperar muito tempo, e nos espíritos de vinte annos, mais ou menos escravizados ás impertinências do estudo, passou como um relâmpago de alegria a certeza d’essa agradável diversão durante os ócios officiaes das endoenças, n’um tempo em que os meios de viação eram morosos, e prohibiam o regalo das ferias pequenas, tão aproveitadas hoje.
A tradição amorosa prendia-se â côrte dos nossos reis pelas memorias galantes dos trovadores e dos serões poeticos, e a Coimbra pela lembrança saudosa da linda Ignez, cujas lagrimas choradas se haviam transformado na fresca fonte solitaria, que rega as flores. Portanto, as imaginações juvenis exaltavam-se, accendiam-se na vaga idealidade do amor, quando a côrte se aproximava; particularmente em Coimbra, onde os trovadores tinham por mestres os rouxinoes dos sinceiraes, a poesia começava a esfumar os seus deleitosos sonhos incoercíveis logo que a fortuna promettia mostrar-lhe em breve as formosas estrellas da constellação real, mais deslumbrantes talvez que as do firmamento…
Chegou finalmente a côrte, as donzellinhas mimosas de fino trato palaciano poderam mirar o bello rosto no claro espelho do Mondego, o rei João III pôde conversar os sábios extrangeiros que preleccionavam nos paços das Alcáçovas, a rainha D. Catharina preparava-se para assistir devotamente ás magestosas solemnidades do grande drama da redempção christã, e fr. Francisco Bobadilha, ermando na ribeira tranquilla, repetia mentalmente o sermão que a rainha lhe incumbira. Abertas de par em par as portas do templo, na manhã de sexta-feira maior, accommodada a côrte nos seus respectivos logares, pairou sobre a nobre multidão esse concentrado silencio que precede os grandes actos funebres da Egreja:

Todas as almas tristes se mostravam
pela piedade do Feitor Divino,
onde ante o seu aspecto benigno
o devido tributo lhe pagavam.

Apenas n'aquella recolhida mudez, que se alastrava por todo o templo, era licito aos olhos irem fallando a sua linguagem cheia de reticencias e de scintillações, trocando uns com os outros palavras de luz, que se entendem e não se escrevem… No grupo das donzellinhas da côrte, rosas mal desabrochadas ainda na frescura matinal da primeira mocidade, embebiam-se soffregamente os olhares namorados dos trovadores de vinte anos como n’uma grande nuvem com luminosos toques de ouro e rosa, d'essas que só podem accender-se no ceu durante as bellas alvoradas e resplender nas formosas cabeças loiras, iriadas como a de Daphne. Uma dessas encantadoras damasinhas parecia haver sido posta ali, entre Deus e os homens, para despertar a vaga lembrança do paraiso ou para receber as orações e as lagrimas e subir ao assento ethereo onde umas e outras se convertem em estrellas, apparecendo sobre o fundo sereno e azul do ceu como para avisar as boas almas de que já lá chegaram…»

In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia, pq 9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.

Cortesia de EL de Lisboa/JDACT