quarta-feira, 31 de julho de 2013

Para mim… Jazz. Chiara Civelo. «Ri e olha de repente para fins de não olhar para onde nas folhas sente o som do vento a passar tudo é vento e disfarçar. Mas o olhar, de estar olhando onde não olha, voltou e estamos os dois falando o que se não conversou isto acaba ou começou?»

Cortesia de wikipedia e jdact


Vaga, no azul amplo solta,
vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
a nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
e a lembrança é que entristece,
dou à saudade a riqueza
de emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
na minha amarga ansiedade
mais alto que a nuvem mora,
está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
à alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
dor que a minha alma tem.



Tenho tanto sentimento
que é frequente persuadir-me
de que sou sentimental,
mas reconheço, ao medir-me,
que tudo isso é pensamento,
que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
uma vida que é vivida
e outra vida que é pensada,
e a única vida que temos
é essa que é dividida
entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
e qual errada, ninguém
nos saberá explicar;
e vivemos de maneira
que a vida que a gente tem
é a que tem que pensar.



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Para mim… Poesia. Miguel Torga. «E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o número de degraus da escada, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera…»

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À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem família,
não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
o que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
o sorriso das pedras,
e a candura do instinto.
És aquele alimento
qe quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
ou em arte,
ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
ou a moça no espelho,
que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
tudo repousa em paz no teu regaço.

Da Realidade
Que renda fez a tarde no jardim,
que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
toda a rama parece
um tecido que tece
a eternidade.

Cântico de Humanidade
Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
actuam como parecem,
sem um disfarce que os mude.

Apenas se os deuses querem
ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
com os aguilhões que nos ferem,
nós também lhes demonstremos
que são mortais e de barro.

Poemas de Miguel Torga, in 'Odes' e 'Nihil Sibi'’

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Para mim… Poesia. Alexandre O’Neill. «Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim. Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino…»

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O poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis.

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
[…]
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardente
e angustiados.

Ah o medo vai ter tudo
tudo.

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer).

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada poe seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos.

Sim
a ratos.

Poema de Alexandre O’Neill, in ‘Poesias Completas, 1951 / 1986

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Para mim… O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Para suavizar o golpe, usaram então de uma habilidadezinha que surtiu efeito: segundo a carta-circular que enviaram às câmaras municipais, ficariam em Santarém alguns procuradores para lembrarem e requererem o que lhes parecer que convém…»

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As Cortes reduzidas ao silêncio e à inoperância
«(…) Durante a sua ausência, tinham-se desenrolado os episódios em que, só por ingenuidade e falta de iniciativa dos represrentantes do povo, os Governadores suspeitos não foram substituídos por gente íntegra. A causa nacional tropeçava em constantes obstáculos, uns levantadors na sombra pelo suborno e pela corrupção estrangeira, outros pela inexperiência política das classes populares, reduzidas pelo Absolutismo e pelo domínio da Inquisição (maldita) na vida social, que tolhera e intimidara as últimas gerações, ao papel quase passivo de suportar resignadamente todas as imposições da alta nobreza e do alto clero. Apesar de ter desagradado muito a resposta dos regentes às advertências do braço popular, não teve este energia para reagir, derrubando-os. Entretanto, o embaixador Cristóvão de Moura, o infatigável português renegado ao serviço de Filipre II, conseguira abrir brecha na unidade dos procuradores dos concelhos, criando um ranchinho de delegados, guiados pelo Manuel Sousa Pacheco. Não tinham coragem de declarar-se abertamente em favor do rei católico, mas, sob a máscara da prudência, da ponderação, intervinham habilmente de forma a moderar os ímpetos dos nacionalistas mais exaltados. A adesão de Sousa Pacheco, procurador de Lisboa, homem muito conceituado de quem não se suspeitava, não foi muito cara, na opinião de Cristóvão Moura, que comunica o facto a seu régio amo, na sua carta de 13 de Fevereiro de 1580: Pede três quintos de renda, incluindo uma vila, e não é muito.
Estes torpes negócios nealizavam-se em grande segredo, porque a maioria dos delegados populares resistiu galhardamente a todas as tentativas de suborno. Por isso, o braço do trabalho se tornava cada vez mais incomodativo e embaraçoso para os governadores vendidos, que o consideravam imprertinente, o que os levou a pensar seriamente em dissolver as Cortes. Convinha-lhes dispersar aquela gente, porém, com subtileza, para não provocar irritações perigosas, porque os procuradores mais exaltados declaravarn a sua intenção de permanecerem em Santarém até se decidir a questão da sucessão. Tão-pouco convinha aos dois pretendentes portugueses que as Cortes se encerrassem antes de elegerem o sucessor ao trono. Ambos, o duque de Bragança e o Prior do Crato, alimentavam esperarrças de serem escolhidos. Aquele, porque sua mulher, a infanta D. Catarina, era a legítima herdeira da Coroa; este, porqure contava com as simpatias populares, mais do que com uma decisão jurídica em seu favor. Mas se os três Estados reunidos nas Cortes se dispersassem, ambos receavam que os governadores, cedendo à pressão dos diplomatas castelhanos, com o pretexto de evitarem uma guerra desastrosa, proclamassem Filipe II rei de Portugal.
Usaram os governadores de toda a sua habilidade para dissolver as Cortes, pois não queriam irritar o terceiro Estado, que não cessava de os maçar com frequentes lembranças e advertências que lhes convinha ignorar. Contudo, havia quem de boa-fé defendesse a teoria de que aquelas Cortes, convocadas pelo cardeal Henrique, deviam consideriar-se automaticamente encerradas com a morte do rei. Era esta a opinião do Conselho do Estado e de alguns letrados, que os regentes consultaram. A maioria dos procuradores, porém, entendia que as Cortes só deviam fechar, depois de escolherem o sucessor do último rei, visto que para isso se haviam convocado expressamente. Tinharn razão; e a morte do cardeal-monarca ainda mais reforçava a necessidade de continuarem funcionando até essa escolha se realizar.
Claro que defendiam a ideia da dissolução imediata o bispo de Leiria e Manuel Sousa Pacheco, ambos secretamente atascados na lama dourada do suborno. Trocaram-se sobre o assunto mensagens entre os três Estados. Não se chegava a uma conclusão ou acordo. Os traidores ocultos, fomentando a confusão e a discórdia, favoreciam Castela. E os governadores espreitavam as oportunidades para levarem mansamente a água ao seu moinho. Em princípios de Março, resolveram sondar a consistência da oposição, enviando uma circular aos três braços de Estado, a comunicar-lhes que tencionavam dissolver as Cortes. Queriam observar a reacção que se produziria. No alto clero só duas vozes discordantes se ergueram: a de Teodósio de Bragança, arcebispo de Évora, que defendia evidentemente a sua parente, duquesa de Bragança, pretensora do trono, e o novo bispo de Miranda, Jerónimo Meneses, irmão de João Telo Meneses, o único governador francamente hostil a Filipe II. Os restantes delegados do alto clero, o sentir do baixo clero era diametralmente oposto, estavam secreta e decididamente voltados para o poderoso monarca vizinho. A nobreza, embora mostrasse descontentamento, aceitou a dissolução. Apenas as classes populares teimavam em não se dispersar, enquanto não votassem, aprovando ou rejeitando, o convénio ajustado entre o cardeal-rei Henrique e Filipe II, visto que para isso tinham sido convocadas.
É curioso notar, porém, que, mesmo entre os mais obstinados na opinião de que as Cortes prosseguissem, havia muitos procuradores ansiosos por voltarem às suas terras distantes. Eram pessoas de trabalho, algumas delas ligadas à lavoura, ao comércio ou às pequenas indústrias locais, que sofriam prejuízos e atrasos, enquanto rendeiros, mestres ou proprietários permaneciam ausentes. Feita a primeira sondagem, decidem-se os governadores a publicar, em 15 de Março de 1580, uma provisão, dissolvendo as Cortes. Para suavizar o golpe, usaram então de uma habilidadezinha que surtiu efeito: segundo a carta-circular que enviaram às câmaras municipais, ficariam em Santarém alguns procuradores para lembrarem e requererem o que lhes parecer que convém e lhes podermos comunicar as coisas que se oferecem». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de Romano Torres/JDACT

Para mim… Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «… cada mestre devia procurar reaver todas as propriedades móveis e de raiz que estivessem alienadas, e castigar os comendadores que não mantivessem as vinhas e campos das suas comendas lavrados»

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«(…) No que respeita às ordens peninsulares, Calatrava, e portanto, Avis e Santiago, a sua estrutura tem mais semelhanças entre si do que diferenças, apesar de terem filiações distintas. A Ordem de Calatrava possuía um único órgão colegial de governo: o Capítulo Geral, onde todos os freires, capelães e cavaleiros, tinham assento e que era presidido pelo mestre. Inicialmente, competia a este convocar diariamente essa reunião, mas como escreve o cronista Rades Andrada dado o género de vida particular dos freires e a sua dispersão pelas comendas, a convocação de capítulo não foi sempre possível. Por esse motivo, tal como fazia Cister para o conjunto das abadias da Ordem, o mestre devia reunir pelo menos uma vez por ano o capítulo com a presença das diferentes dignidades da Ordem e dos Comendadores, altura em que se promulgariam Definições, se precisavam detalhes de observância religiosa e de disciplina e se decidiam assuntos de ordem meramente económica. O facto de a Ordem de Avis incluir os Treze na sua organização, os documentos relativos às visitas efectuadas por freires calatravenhos aos conventos destas duas milícias provam-nos isso, leva-nos a supor que Calatrava também conhecia esta instituição nos séculos XII e XIII, embora não haja qualquer referência, na milícia castelhana, à sua existência. Não sabemos, no entanto, como é que esses treze cavaleiros eram escolhidos na ordem portuguesa, mas é possível que fossem nomeados em capítulo pelos restantes freires, com o objectivo único de eleger o mestre. Também ignoramos se teriam outra função para além desta que acabamos de enunciar.
Função semelhante à do Capítulo Geral de Calatrava era desempenhada pelo Cabido Geral da Ordem de Santiago, constituído pelo colectivo dos comendadores e por treze cavaleiros escolhidos pelo mestre, os Treze. Segundo a Regra, a reunião do cabido geral devia realizar-se anualmente, no dia de Todos os Santos, o que nem sempre terá acontecido. No século XIII, conforme aponta Lomax, esta reunião teria lugar onde o mestre o desejasse. Será importante referir que uma vez que o cabido geral dos espatários tinha poder legislativo, era aqui que se promulgavam os Estabelecimentos, várias vezes se converteu numa espécie de contra-poder dentro da Ordem relativamente ao mestre e à sua autoridade. Na Ordem de Santiago, havia, para além do capítulo Geral, um outro órgão colegial de governo: os Treze. Escolhidos pelo mestre, a quem deviam obediência, este grupo de cavaleiros era o seu conselheiro em diversos assuntos respeitantes à milícia. Se assim o entendesse, o mestre podia depor qualquer um destes conselheiros, desde que tivesse o consentimento pelo menos da maioria dos restantes. Inversamente, os Treze podiam demitir o mestre se comprovadamente se visse que era maao, danoso ou sem proveito aa Ordem. No entanto, a sua importância advinha-lhes essencialmente da responsabilidade directa que tinham na eleição dos mestres. Para este efeito, eram convocados pelo Prior-mor, no prazo máximo de 50 dias após a morte ou demissão daquele.
Tanto na Ordem de Calatrava como na de Santiago o governo, a administração, e o serviço religioso eram desempenhados por freires detentores de dignidades próprias. A primeira de entre estas dignidades era precisamente o mestrado. De facto, no topo das duas ordens militares encontrava-se o mestre. Em tempo de guerra chefiava as hostes das milícias, quer quando integradas no exército real, quer quando actuavam sozinhas. Nos períodos de paz, competia-lhe a administração dos bens da Ordem e a organização da sua vida interna, numa actividade geral que ia desde a recepção dos votos dos noviços aos julgamentos e aplicação das penas aos freires que não cumprissem a Regra. Contudo, o exercício das suas prerrogativas estava limitado, tanto em Calatrava como em Santiago, pelo Cabido ou Capítulo da Ordem, apesar de, pelo menos no que respeita a Calatrava, apenas o abade de Cister ter poder para lhe retirar a dignidade mestral em caso de incumprimento grave dos seus deveres. Quanto a Santiago, o mestre, ouvido o Capítulo Geral ou o Particular, legislava sobre matéria espiritual e temporal, relativamente a membros da ordem, Estabelecimentos, e relativamente aos povos do senhorio, Leis.
Como principal responsável pelos bens materiais da Ordem, cada mestre devia procurar reaver todas as propriedades móveis e de raiz que estivessem alienadas, e castigar os comendadores que não mantivessem as vinhas e campos das suas comendas lavrados. Não podendo usufruir das rendas das Comendas que havia entregue a cavaleiros, os seus rendimentos deveriam basear-se nas que pertenciam à mesa mestral, num conjunto de bens, rendas e comendas que se encontravam adstritas às necessidades e despesas do mestre. O comendador-mor ocupava o lugar mais importante da Ordem de Calatrava, logo a seguir ao mestre, e era, até ao século XIV, escolhido por este. Nesta mesma ordem, governava a milícia na ausência do mestre, em tempo de paz ou de guerra, e sempre que o mestrado se encontrava vago. Por esta razão, em Avis, competia ao comendador-mor, convocar os Treze para que se procedesse a nova eleição. Em Santiago, o segundo posto da hierarquia era ocupado pelo prior-mor pelo que o Comendador mor era sobretudo o elo de ligação entre os comendadores e os freires de cada uma das províncias da Ordem e o mestrado, exercendo junto dos primeiros o poder jurisdicional do mestre, de uma forma delegada, o que lhe permitia entrar e sair das diferentes comendas sem necessitar da autorização do comendador da terra. Em ambas as milícias tinha uma importante função militar, já que num caso, enquadrava as fileiras dos espatários e no outro, era o capitão das 300 lanças com que os calatravenhos eram obrigados a servir o rei quando este estava em guerra com os infiéis.

O prior-mor ocupava o segundo lugar da hierarquia dos espatários. Por esta razão, assessorava o mestre em tarefas burocráticas, por exemplo, elaborava o Livro de Matrícula das Profissões, e substituía-o na sua ausência ou na vacatura do mestrado. Na Ordem de Santiago era, pois, o prior-mor quem deveria convocar os Treze, no prazo máximo de 50 dias, para eleger novo mestre. Apesar dos documentos fundacionais dos espatários apenas referirem um prior-mor, existiram pelo menos três: um em Castela (Uclés), outro em Leão (S. Marcos) e, finalmente, um terceiro em Portugal (Palmela). Situação idêntica ocorreria, aliás, em Calatrava, já que tanto Avis, como Alcântara (no reino de Leão), pelo menos, tiveram também os seus priores-mor.
Na Ordem de Calatrava, o prior-mor, terceiro na hierarquia interna, estava incumbido da orientação espiritual de todos os membros. Segundo as primeiras Formae Vivendi (1164 e 1187), os Priores tinham como função celebrar missas e ouvir as confissões dos freires. Em 1195, porém, os freires já se podiam confessar a freires clérigos que o Prior houvesse nomeado, estando no entanto reservado a este a absolvição dos pecados mortais. Inicialmente eleitos pela maioria dos freires, os priores de Calatrava passaram mais tarde a ser designados pelo Abade de Morimond. Tal como os abades cistercienses, o prior-mor de Calatrava podia usar as insígnias pontificais e exercer funções semelhantes às dos Bispos, mas não podia intervir nos assuntos temporais sem autorização do mestre, apesar de provavelmente ser ele o encarregado de uma das chaves da caixa que continha as rendas que o ecónomo do convento arrecadava». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da F. L. Porto/JDACT

terça-feira, 30 de julho de 2013

A Condessa-rainha. Teresa. Luís Amaral. Mário Barroca. «Os três nobres franceses tornaram-se, assim, cunhados e ficaram umbilicalmente ligados à Coroa de Leão e Castela. Poucas expedições militares tiveram tão profundas consequências no devir político da Península...»

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As intervenções francesas no espaço ibérico ao longo do século XI
«(…) Pouco depois de ter regressado aos seus domínios, o duque Hugo I abdicaria do título ducal, que detinha desde 1076, e professaria na abadia de Cluny, governada pelo seu influente tio-avô, o abade Hugo, o Grande (1049-1109). A escolha de fé do duque Hugo não deixou de causar alguma preocupação em Roma, sendo célebre a epístola que o papa Gregório VII (1073-1085) enviou ao abade Hugo, a 2 de Janeiro de 1080, criticando-o abertamente por este ter provocado ou aceite o voto do sobrinho, deixando cem mil cristãos sem protector. Mas de nada valeram as preocupações do papa. Hugo de Borgonha professou mesmo na abadia de Cluny, onde viveu recolhido durante catorze anos, vindo a falecer em 1093, com apenas 37 anos de idade. Em 1078 ou 1079 temos notícia de uma nova (e algo obscura) expedição franca, desta feita organizada pelo conde Hugo II de Chalon-sur-Saône, filho do conde Thibaut de Semur e seu sucessor no título condal. O seu pai, participara na grande incursão de 1063-1064 ao lado do duque Guilherme VIII da Aquitânia, que culminara com o cerco e a conquista de Barbastro, tendo falecido em 1065 em Tolosa, quando os exércitos cristãos vitoriosos se retiravam. O filho planeou uma expedição, cujos preparativos já estavam a decorrer em 1078 e 1079, altura em que, para reunir o montante necessário, vendeu vários direitos senhoriais na zona de Chalon-sur-Saône aos monges de Cluny. A expedição teve lugar em fins de 1079 ou inícios de 1080, mas o conde Hugo II não teve melhor sorte que seu pai, tendo falecido num recontro militar cujo nome se ignora. A única referência ao seu trágico destino encontra-se no processo de eleição de Walter para bispo de Chalon, em 1080, onde se alude à sua recente morte.
Hugo II de Chalon-sur-Saône era casado com Constança de Borgonha, filha do duque Roberto I, o Velho e portanto irmã de Henrique de Borgonha e sobrinha-neta do abade de Cluny, Hugo, o Grande. Pouco depois de enviuvar, Constança de Borgonha acabaria por casar, em 1080, com Afonso VI de Leão e Castela (1065-1109), o que ajudou a consolidar os laços entre a casa ducal e a Península Ibérica e incentivou, certamente, a realização de novas expedições militares borgonhesas.
Com a retirada de Hugo I de Borgonha para avida monástica, em 1079, o título ducal ficou entregue ao seu irmão Eudes I (ou Eudes Borel), que o manteve até à sua morte, ocorrida em 1103. Nove anos depois da expedição de seu irmão e oito anos depois de ter assumido os destinos da linhagem, Eudes I promoveu uma nova expedição borgonhesa à Península, que teve lugar em 1086-1087. A sua organização contou com o apoio explícito do abade de Cluny, Hugo, traduzido num apelo em que este exortou os cavaleiros cristãos a integrarem o projecto de seu sobrinho-neto. Nela participaram, para além do próprio duque Eudes I, os seus irmãos Roberto, então já investido como bispo de Langres e Henrique de Borgonha, o mais jovem dos sete filhos de Henrique de Borgonha, que contaria, então, cerca de 18 anos de idade, bem como o seu tio Roberto de Borgonha (filho do duque Roberto I, o Velho, e, portanto, irmão ou meio-irmão da rainha Constança e de Henrique de Borgonha). Na mesma expedição participou igualmente um primo dos três primeiros, Raimundo de Borgonha, conde de Amous (filho de Guilherme I, o Grande, conde de Borgonha). E compareceram, naturalmente, muitos outros nobres, entre os quais Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, e Savary de Donzy, mais tarde conde de Chalon-sur-Saône. Penetrando no espaço ibérico, o exército franco dirigiu-se para o reino de Saragoça. A conquista de Tudela, ao cabo de um prolongado cerco, foi o acontecimento mais memorável desta poderosa expedição. Os cavaleiros francos tiveram de defrontar Rodrigo Díaz de Bivar, El Cid, que então se tinha aliado às forças muçulmanas da taifa de Saragoça. Um documento outorgado na corte leonesa refere-se ao magno exercitu reunido pelos nobres franceses que tinha trabalhado no cerco de Tudela quid fecerunt et quantum laboraverunt in obsidione Tudele.
Foi provavelmente na sequência desta expedição que D. Constança de Borgonha, rainha de Leão e Castela e tia de Eudes, Henrique e Roberto, convidou Raimundo e Henrique de Borgonha a permanecerem na Península. O certo é que, em 5 de Agosto de 1087, o duque de Borgonha, Eudes I Borel, ainda se encontrava entre nós, tendo sido recebido por Afonso VI de Leão e Castela e pela rainha D. Constança, em Leão, onde confirmou uma doação feita pela sua tia aos monges de Tournus em memória de seu primeiro marido, o conde Hugo II de Chalon-sur-Saône. Na esteira dos sucessos militares desta expedição foram acordados üês casamenros que selaram as relações entre a família real castelhano-leonesa e três grandes casas senhoriais francesas: - Raimundo, conde de Amous, da linhagem dos condes de Borgonha, casou com Urraca, filha legítima dos reis Afonso VI de Leão e Castela e Constança de Borgonha; - Henrique, da linhagem dos duques de Borgonha, casou com Teresa, filha natural de Afonso VI de Leão e Castela e de Ximena Moniz; - Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, casou com Elvira, filha natural de Afonso VI de Leão e Castela e de Ximena Moniz (e, portanto, irmã de Teresa). Os três nobres franceses tornaram-se, assim, cunhados e ficaram umbilicalmente ligados à Coroa de Leão e Castela. Poucas expedições militares tiveram tão profundas consequências no devir político da Península...»

In Luís Amaral, Mário Barroca, A Condessa-rainha, Teresa, coordenação de Ana Maria Rodrigues e Outras, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4702-1.

Cortesia de C. Leitores/JDACT

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Histórias de Ler e Comer. Manuel Guimarães. «Ao contrário do que a designação de pasteleiro significa hoje, ‘os pasteleiros’ portugueses do século XVI não se dedicam ao fabrico de doçarias. Tal actividade era própria dos confeiteiros…»

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Lisboa e as antigas casas de comeres
«No primeiro dia de Abril de 1984, as preocupações dos portugueses não lhes permitiam recordar nessa data a criação, seiscentos anos antes, de uma das mais curiosas instituições da actividade laboral portuguesa, a Casa dos Vinte e Quatro.
Fundada por conta do mestre de Avis, responsável pela governação, agrupava os trabalhadores portugueses, dois de cada mester, dando lhes assento na Câmara de Lisboa, incumbidos de defender aí os interesses dos oficiais mecânicos que, nas suas humildes profissões, asseguraram serviços essenciais à população da capital. Seriam, porém, os Descobrimentos , e já em pleno século XVI os directos responsáveis pela radical transformação de tais actividades, obrigados a responder a um aumento de população e de riqueza, ao inesperado aparecimento de muitos artífices estrangeiros e à atracção da aventura ultramarina que, levando de Lisboa muitos e bons artífices, criava lugar à gente das províncias que demandavam Lisboa em busca de melhor sorte. O próprio Bandarra, poeta e sapateiro de Trancoso, lamuriava-se nas suas conhecidas trovas de não poder exercer o seu mister em Lisboa, onde seria, certamente, mais apreciado e melhor recompensado.
Ficavam lá bem longe os tempos pacatos de João I. Todos os dias surgiam novos ofícios e novos oficiais que solicitavam à Casa dos Vinte e Quatro o indispensável regimento que lhes permitisse trabalhar em paz e sossego, protegidos da cobiça dos estrangeiros, da concorrência desleal e dos menos escrupulosos, capazes de tudo pela avidez do lucro. Aos velhos carpinteiros, barqueiros, barbeiros, calceteiros e boticários depressa se juntaram os cabeleireiros, sirgueiros, peliqueiros, brunidores de holandilha e, como não podia deixar de ser, os profissionais de comes-e-bebes, com especial relevo para os pasteleiros, chocolateiros, confeiteiros e taberneiros, indispensáveis na Lisboa portuguesa de Quinhentos, que foi, infelizmente por pouco tempo, a capital do mundo.

Dos antigos pasteleiros
Ao contrário do que a designação de pasteleiro significa hoje, para nós, homens e mulheres da actualidade, os pasteleiros portugueses do século XVI não se dedicam ao fabrico de doçarias. Tal actividade era própria dos confeiteiros. Embora com actividade reconhecida desde tempos imemoráveis, só em 1554 o número de mestres pasteleiros sediados na capital justificou que se organizassem, para solicitar ao poder público regimento próprio, como têm os outros ofícios mecânicos, no que foram prontamente atendidos. Mas só muito mais tarde, em 1716, seriam admitidos na Casa dos Vinte e Quatro, onde foram anexados à bandeira dos Tecelões, embora contra a vontade dos procuradores dos mesteres e da prestigiosa instituição onde desejavam entrar a todo o custo.
Numa época de grandes e fabulosas gestas, não mereciam, naturalmente, os modestos pasteleiros atenções de cronistas, nem favores de poetas. Felizmente, a sua actividade salvou-se intacta na secura dos regimentos dos seus ofícios, peças de inestimável valor, que, desprevenidas, trazem até nós o eco fiel do dia-a-dia destes longínquos antepassados dos nossos restaurantes. Tendo como princípio fundamental da sua actividade autorizar a abertura de loja só aos mestres examinados, começaram os ditos regimentos por regulamentar os exames do ofício, fabricando à vista do júri um pastel de frangão, um pastel real, uma empada de pescada e um conjunto de pequenas unidades, cujos preços variavam entre cinco e 50 reais.
Seguia-se apertado interrogatório sobre os adubos próprios dos pastéis confeccionados com cames de vaca, porco, cervo e carneiro, tendo em conta que os temperos variavam com a época do ano, aplicando-se de modo e em quantidades diferentes ao fabrico de Verão e ao fabrico durante o Inverno. Os alunos propostos a exame pagavam 300 reais sendo portugueses, e o dobro se o não fossem. As provas eram rigorosas e pressupunham quatro anos de aprendizagem gratuita em loja de mestre examinado e, na maior parte das vezes, sob duríssimas condições. Em caso de reprovação, os candidatos podiam requerer novo exame três meses depois, sendo sempre obrigatória a prévia inscrição na Irmandade de São Marçal. Os mouriscos, que abundavam em Lisboa, não podiam ser examinados, concedendo o regimento privilégios especiais aos filhos de mestres que quisessem continuar no ofício de família.

Dos produtos e dos preços
Há 500 anos, as lojas dos pasteleiros de Lisboa primavam por uma organização a vários títulos surpreendente. Asseadas em extremo, cobriam o vão da porta com uma cortina branca, podendo, além dos pastéis, guisar e assar peixe e carne para vender ao povo. Toda a produção era obrigatoriamente vendida na loja, sendo rigorosamente proibida a venda ambulante sob pena de graves sanções, com excepção das empadas que vierem de fora da cidade e que tenham bilhete do juiz do ofício. Proibida estava também a utilização de carne de ovelha, cabra, bode ou porca, assim como a venda de empadas ou pastéis que tivessem sobrado da véspera». In Manuel Guimarães, Histórias de Ler e Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN 972-699-294-X.

Cortesia de Vega/JDACT

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «Bendita seja a hora em que te vi, e esta noite de encanto e inspiração. És da vida e da terra, como eu sou. Todo o meu ser humano te conhece: meu ser que já teu vulto enevoou, enquanto foste nuvem ilusória»

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Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
Eu sou aquela
nuvem que teu espírito derrama
sobre o mundo, que a sente, como a estrela
sente, de longe, os olhos que a contemplam.

Eu sou a tua alma aparecida,
criatura imortal da tua dor!
E vivo, como tu, mas outra vida,
e choro, como tu, mas outras lágrimas...

Um mistério me encobre, e faz de mim
a sombra que te empece...
Muito em breve,
tu saberás, Marãnus, porque vim
à tua soledade...

E, na penumbra,
tinha um alto relevo musical
a ignota Aparição que, nestes versos,
é como fria imagem sepulcral.

Marânus ajoelhando, fervoroso,
pendeu a fronte ardente sobre o peito
e algum tempo ficou silencioso,
e não ousava olhá-la, face a face.
Na merencória palidez do céu,
desabrochavam lírios espectrais...
A luz da lua nova era uma aragem
de sonho, sobre a rama dos pinhais...
Eram de sonho as pedras; e de sonho.

A terra onde Marânus ajoelhou.
Ele mesmo ela sonho, e a linda noite
e essa estranha mulher que lhe falou.
E respondeu, inquieto e entontecido,
como afogado em ondas de emoção.

Indefinido amor desconhecido,
um sobressalto, vago e interior,
há muito tempo já, me perturbava.
E, ansioso, tentava definir
essa dispersa luz, que me doirava
de inefável tristeza madrugante.
E chorava, e cismava, e assim dizia.
Sombra que eternamente me persegues,
ilumina-te de íntima alegria
e dissipa-me as trevas deste mundo!
Ó Sombra, toma corpo e carne viva,
ressurge, à luz do sol! Eu quero ver-te!
E a minha voz, exausta e fugitiva,
caía-me nos lábios, quase morta.

Mas tu vieste, amor, se, por acaso,
pertences a esta vida; se não és
um fumo deste incêndio em que me abraso,
uma chama irreal do meu delírio…

Eu sou a tua eleita, a Virgem Pura.
E vim rasgar as névoas, desvendar
esse antigo segredo da Natura
e o sagrado mistério da tua raça.

E Marânus, num súbito alvoroço,
falou, como quem reza uma oração.

Bendita seja a hora em que te vi,
e esta noite de encanto e inspiração.

És da vida e da terra, como eu sou.
Todo o meu ser humano te conhece:
meu ser que já teu vulto enevoou,
enquanto foste nuvem ilusória.
Agora, és a verdade, a luz divina.
E a bruma, que meus olhos abafava,
condensou-se na forma cristalina,
irradiante e bela do teu corpo.

Vejo nascer doirada madrugada,
uma alegria etérea e criadora,
ó minha alma triste e naufragada
na fundura oceânica das lágrimas!

Renasce a luz! Renasce! Vejo, enfim!
Já vejo o claro dia! A cada instante,
sinto-te, minha Deusa, ao pé de mim.
Bafeja-me o teu hálito celeste.

Num movimento, cego e inconsciente,
Marânus levantou-se. E, comovido,
tentou beijar-lhe a face, mas somente
beijou a poeira branca do luar...
E, em mais perfeita e nítida harmonia,
logo a sua figura se desenha
na levíssima sombra, que descia
das nuvens, todas cheias dum sorriso.
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT

Há dias assim… A Luta pela Liberdade. Viriato. Maurício Pastor Muñoz. «Em linhas gerais, a ‘guerra de guerrilha’ é a guerra ibérica ou hispânica levada a cabo pelas tribos da Meseta ou do litoral. O seu objectivo político-militar era a independência da sua pátria em relação a ... Roma»

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Estratégia
«(…) Relativamente à estratégia de combate que adoptou, podemos dizer que Viriato foi o representante típico (e o mais representante da antiguidade) da guerra de guerrilha, ou seja, da táctica militar que convinha aos habitantes da Península Ibérica e que foi usada com muito sucesso no seu território. Os romanos chamavam a este tipo de guerra bellum, e também latrocinium, para sublinhar que não era uma guerra organizada, ou seja, desprezava e violava as regras da guerra convencional, e que era protagonizada por latrones, ou seja, bandidos ou bandoleiros. No entanto, de acordo com a tradição que nos chegou através de Lívio, as lutas contra Viriato são exclusivamente designadas por bellum. E Roma talvez se lhes referisse da mesma maneira, mas não há certezas a este respeito.
Em linhas gerais, a guerra de guerrilha é a guerra ibérica ou hispânica levada a cabo pelas tribos da Meseta ou do litoral. Mas graças a Viriato esta forma de luta, que até aí fora usada unicamente como táctica defensiva, torna-se numa arma terrível que paralisa e destrói os exércitos romanos, uns atrás dos outros. E é, precisamente, este novo uso da táctica de guerrilha, caracterizado por um arrojado espírito de ofensiva, que Schulten identifica como aquilo que distingue a guerra de Viriato de outras guerras populares. Até, aí, a guerra de guerrilha era uma estratégia defensiva, como foi o caso da guerra celtibérica de Numância. Pelo contrário, a característica essencial da estratégia de Viriato era o ataque. O seu objectivo político-militar era a independência da sua pátria em relação a Roma, a expansão da sua influência e poder às ricas comarcas meridionais (Betúria, Carpetânia e Bética) e a garantia de que esses factos seriam reconhecidos por Roma. Viriato levou a guerra para território romano, e, segundo Apiano, foi aí que foi investido chefe militar, ou caudilho, das tropas lusitanas. Na prática, o seu desígnio era a ofensiva estratégica. Na verdade, nunca conseguiu que a posse do território conquistado fosse duradoura, mas o aumento dos bens materiais através dos saques era o suficiente e já o satisfazia.
Para uma ocupação definitiva precisava de homens, de meios materiais e, sobretudo, de uma capacidade organizativa e administrativa de que não dispunha. Quando falamos da sua estratégia, há que sublinhar que se tratava de uma estratégia de desgaste, de uma estratégia dilatória, que, em certos casos podia igualmente conduzir a investidas tácticas letais. A táctica militar usada por Viriato variava de acordo com as circunstâncias. Umas vezes tinha como objectivo cansar o adversário, o que conseguia provocando o nervosismo ao impedir que se reabastecesse, outras vezes eliminava-o pela surpresa da emboscada ou de uma fuga aparente. Só muito excepcionalmente combatia com o exército em formação. Isto explica-se, por um lado, porque as suas tropas eram menos numerosas, pela inferioridade das armas dos seus soldados em relação às dos legionários romanos, e porque algumas das armas dos lusitanos eram fornecidas pelos próprios romanos sendo, com certeza, de fraca qualidade. A grande mobilidade que caracterizava as tropas lusitanas possibilitava o tipo de combate que lhes era mais vantajoso: o combate disperso em que resultavam em cheio os ataques de surpresa, seguidos de fuga rápida e de um contra-ataque repentino. Por isso, as armas de arremesso eram mais importantes do que a espada. Ora, precisamente, Viriato era muito hábil a manejar a lança de arremesso.
Por outro lado, o objectivo último de Viriato não era a conquista permanente do país inimigo, mas o saque sistemático do território. Logo, a rapidez e a surpresa eram essenciais neste tipo de gurra. Viriato desorientava e aniquilava os romanos através do ataque disperso levado a cabo tanto por soldados de infantaria como de cavalaria. Os romanos chamavam a esta técnica concursare, o temível concursare ibérico, o constante atacar, retirar e contra- atacar a que tantas vezes se referem os historiadores romanos. Este tipo de ataque também foi usado por outros povos, como os berberes africanos ou os partos, que partilhavam a mesma arte bélica, e até mesmo pelos próprios romanos, como sucedeu na guerra dos pompeianos contra César.


Uma das tácticas mais usadas por Viriato era a emboscada, em que rapidez e surpresa se aliam para atacar e derrotar o inimigo. Normalmente, armavam-se emboscadas em desfiladeiros que obrigavam os soldados romanos a marchar numa longa e estreita fila, sendo, portanto, um magnífico alvo para os atacantes. Viriato era mestre na arte de atair o inimigo para a emboscada, tão depressa fugindo como atacando. Com as emboscadas destrói o inimigo com toda a segurança: a falsa retirada induz o inimigo a persegui-lo precipitada e desordenadamente, e nessa altura rapidamente se volta contra ele e passa ao ataque, provocando ainda maior desordem nas tropas inimigas.
As caravanas de abastecimento e os soldados forrageadores eram particularmente vulneráveis aos ataques de Viriato. Os últimos por terem de se dispersar por amplas regiões para conseguirem pasto suficiente para os animais, e aquelas por terem de percorrer caminhos conhecidos sendo, portanto, fáceis de localizar e atacar. Quando Viriato queria despistar o inimigo recorria à seguinte táctica:
  • escolhia um pequeno grupo de soldados e atacava inesperadamente, permitindo assim que o grosso do seu exército tivesse tempo para fugir e para se esconder. Se, por outro lado, queria livrar o seu exército de um ataque desvantajoso, dispersava-o em pequenos grupos para depois voltar a reuni-lo em local combinado. Sertório também usou estas estratégias na sua luta contra Roma. Viriato não costumava ficar muito tempo no mesmo sítio, pois a sua estratégia era essencialmente movimento, mas nalgumas ocasiões ocupava uma fortaleza, uma cidade ou um monte, a partir dos quais se lançava ao ataque juntamente com as suas tropas, como fez na cidade de Tucci (Martos) ou no Mons Venerís (Monte de Vénus).
In Maurício Pastor Muñoz, Viriato La Lucha por La Liberdad, Viriato, A Luta pela Liberdade, Alderabán, Ediciones,SL, 2000, Ésquilo, Lisboa, 2003, ISBN 972-8605-23-4.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

domingo, 28 de julho de 2013

Marânus. Teixeira de Pascoaes. Prefácio de Eduardo Lourenço. «Quem és tu? De onde vens? Não te conheço! És da terra e da vida? Ou simplesmente ilusório fantasma de beleza? Destas sombras que surgem, ao luar e à superfície vã da Natureza?...»

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Um só homem possui todo o mundo, a lua enche de luar todo o mar... In Marânus

Prefácio
«(…) Não há na nossa literatura poema mais perturbador e incandescente, poema do Desejo como forma da existência buscando desde a Origem novas formas para se encarnar em vão e nessa busca criando o que não existe e por fim o verbo escuro em que se redime da sua própria insatisfação. É, a esse verbo escuro que Pascoaes chamou com nome nosso imemorial Saudade, pondo nele nova substância, a do mesmo Desejo transfigurado pela consciência da sua imperfeição divinamente criadora. Nunca esse verbo escuro resplandeceu nas trevas com mais luminosa evidência que nas páginas, hoje ainda como ocultas, deste canto único onde o Inferno e o Paraíso de que somos feitos misturam o seu fogo e a sua água eternos». In Eduardo Lourenço, Dezembro de 1990, Roma

Galiza, terra irmã de Portugal,
que a divina Saudade transfigura,
a tua alma é rosa matinal,
onde urna lágrima de Deus fulgura.
Terra da nossa infância virginal,
altar de Rosália e da Ternura,
Dedico-te estes versos, que, uma vez,
compus, em alto cerro montanhês.

Marânus e Eleonor
Marânus era o ser que divagava,
consigo, pelo mundo solitário.
A sua própria alma o alimentava
e dava-lhe a beber das suas lágrimas.

Empecera-lhe a noite. E, desde então,
rodeado de espantos e de assombros,
vive numa perpétua inquietação.
Falho de ânimo e pobre de esperança,
apenas o salvou da negra morte
esta misteriosa simpatia,
que, semelhante à tua lira, Orfeu,
as feras enternece e a luz do dia!
Atrai as selvas virgens que murmuram,
os inertes penedos taciturnos
e as estrelas do céu que nos procuram,
com seus olhos de eterna claridade.

Por isso, ele ia andando, neste doce
enlevo da paisagem, neste encanto,
que paira, magoado, sobre as cousas,
onde, em silêncio, jaz divino canto...

Nos princípios do outono, quando as nuvens
aparecem nos montes revestidos
de folhinhas doiradas, e, nos vales,

Há frios tons de cinza, humedecidos,
chegou, já tarde, a um sítio, com pinheiros,
fragas cheias de musgo, tojo bravo,
que domina dois íngremes outeiros,
um rio, verdes campos e a montanha.

Ali, parou Marânus. Do infinito,
uma infinita lágrima descia
e lhe tomava o coração aflito
e perturbado de íntimos receios,
quando viu, perto dele, uma Figura
desenhar-se, no escuro do arvoredo,
em diluídas formas e apagados
contornos de esplendor e de segredo.

E, atónito e surpreso, olhava, olhava
aquela milagrosa aparição,
que, em brumas transcendentes, disfarçava
seu angélico rosto de mulher.

A lua, que era nova e ia espargindo
um luminoso e vago encantamento
nas ermas coisas lívidas, sorrindo,
mostrou-se, dentre as nuvens, que se abriram.
E Marânus, ao vê-la, mais perfeita,
banhada em luz, lhe disse, de repente:

Quem és tu? De onde vens? Não te conheço!
És da terra e da vida? Ou simplesmente
ilusório fantasma de beleza?

Destas sombras que surgem, ao luar
e à superfície vã da Natureza?
Sentimentos aéreos, flutuantes,
do coração da noite, esparso e oculto?

E o silêncio gemia trespassado
pela voz de Marânus, que era um vulto
de som, alada sombra que se ouvia...
E a nocturna Visão, aproximando-se
do nocturno Viandante:
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT