quarta-feira, 19 de junho de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «A região do Alto Alentejo acabara de ser assaltada por uma destas vagas e um punhado de gente abandonara em fúria os campos à procura da protecção das vilas, onde clarissas e monjas de São Bento serviam de hospital»

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«(…) Fazia a vez duma aparição angélica, cavalgando sozinho pelos campos pedregosos da Terra como se fossem os jardins alados do céu. Agora, dois anos quase volvidos sobre a morte de Inês, era um pobre diabo, grosso e disforme, de olhar esgazeado e pêlo grisalho, sem asas nem luz. Restava-lhe apenas um resto do incêndio em que outrora se abrasara de amor e que agora lhe servia para saciar crueldades e destemperos. Também ele, aos olhos de quem chegava do exterior, parecia ser rombo próximo de alívio naquela acumulação de electricidade explosiva que o homicídio da jovem aia de Constança Manuel dera em provocar. Mal Pedro tirou a primeira fala, apanhou-lhe a irmã a convulsão grotesca da voz. Gago, pensou ela. Percebeu de imediato a origem daquela perturbação e visualizou sem querer o choque brutal de Santa Clara e suas consequências. Aquele homem, com a voz desfeita, estava destinado a mergulhar mais tarde ou mais cedo num bloqueio fechado e impenetrável; tornar-se-ia então um ser incompreensível, emparedado num sofrimento insuportável. Sofria o falar, como se este fosse o ícone da sua dor. Tanto é castigo para um enfermo do amor a palavra como o silêncio, pois este por dentro é a cisma duma aflição e aquela a cifra visível deste. - Tão abatido vos vejo. Que Deus se amerceie de vós, meu irmão - pediu, tomando-lhe as mãos nas suas.
Pedro, de mais inquieto para repousar num pedido assim, mostrou-se abstracto. A abstração é a inteligência dos estúpidos ou a vitória dos impotentes. Talvez fosse este o caso do príncipe. Vivia rodeado por uma névoa, tingida pelo sangue dos seus horrores, que tanto lhe servia de alçaprema para atacar como de escudo para defender. Ainda assim, no círculo da sua aura, tirante a roxo, possuía claridade bastante para vislumbrar os infortúnios da irmã. Não tardou que esta lhe falasse dos órfãos ali retidos. - Senhor, peço-vos por mercê atenção para estes infelizes que o braço da peçonha deixou sem amparo. Tendes neles ocasião de provardes vossa bondade. Par Deus, não os esqueceis e ponde no caso toda a vossa ardideza.
Indicou-lhe o príncipe, como quem sabia ao que vinha, João Afonso Telo, irmão do português assassinado na rua larga de Toro. O valido, ciente do desastre que caíra sobre a família de parente tão chegado e de tão elevada fortuna, oferecera-se já para acolher em sua casa os quatro sobrinhos. Estava casado com urna irmã de Diogo Lopes Pacheco, Guiomar Pacheco, sisuda senhora de avultado dote, que lhe dera quatro filhos, três rapazes e uma rapariga, quase da mesma idade dos sobrinhos. - Tirai, alta senhora, o cuidado dos infortunados filhos de meu desgraçado irmão. Não vos aflijais por eles. O meu tecto será o deles e nenhum dano daí lhes poderá advir. Se vossa senhoria nisso consentir, a virtuosa mãe de meus filhos deles ficará sendo mãe e protectora.
Aquietou a rainha. Acordaram os três que dentro em pouco regressaria Pedro por Évora, tomando Telo os sobrinhos em sua casa. Até lá, o príncipe, que era desde idade tenra grande monteiro, já que fora criado apartado da corte, nos coutos de Alcobaça e Alfeizarão, ou nos reguengos da Atouguia e Serra d'El-Rei, desejava bater os montados do Guadiana à procura de caça grossa. Cevava nas batidas a mesma sede de violência com que por vezes desbaratava a justiça. Montear era nele uma sevícia, não uma flor galante da cavalaria. E por vezes misturava às batidas o cível e o crime, fazendo os beleguins da sua vereação esquadrinhar com minúcia aldeias e casais à procura dum caso à altura do escarmento da sua chibata ou dum escândalo merecedor do seu garrote.
No regresso, meia dúzia de léguas depois de Portel, soube a irmã, doente. A grande vaga de peste que oito anos antes varrera os cinco reinos da Península, limpando quase metade da população, e que arrebatara em Teruel, aos vinte anos, a filha mais nova de Afonso IV de Portugal, rainha de Aragão e esposa de Pedro IV tornara-se endémica e não mostrava disposição de largar os lugares. Estava a regressar com uma regularidade que intimava ao terror. Circunstâncias da água ou da atmosfera, disposições do solo ou da vegetação, eram suficientes para despertar uma nova crise. Uma vaga passageira da doença fazia então umas tantas vítimas e depois desaparecia, para reaparecer um pouco adiante, sempre do mesmo modo inexplicável e inesperado.
A região do Alto Alentejo acabara de ser assaltada por uma destas vagas e um punhado de gente abandonara em fúria os campos à procura da protecção das vilas, onde clarissas e monjas de São Bento serviam de hospital. A fúria é táo-só o pânico repercutido em revolta. Évora vira-se submergida por uma onda de retirantes, que assustam sempre mais pela danação que pelo suplício. Os empestados foram recebidos pelas irmãs e isolados numa tenda improvisada nos baixios que ficavam a norte do açougue, fora de cerca; os outros, persuadidos a regressarem aos seus lugares, debandaram para os arrabaldes. Depois, não se sabia se pelas águas ou se pela viração que soprara de poente, vinda dos cimos, onde estava o mosteiro das irmãs de São Bento, alguns vilões apareceram com a doença.
Não tardara que dentro da alcáçova surgissem também casos de moléstia. Sem razão, a rainha-mãe sofrera tonturas, calafrios, vómitos e um desusado abatimento do corpo. Injectaram-se-lhe os olhos de sangue, deformara-se-lhe o rosto, incharam-se-lhe os beiços e a língua. Sobrevieram depois as tumefacções ganglionares na região cervical e nas axilas. No havia incerteza, a rainha-mãe de Castela fora apanhada pela landre. Também ela entrava afinal nas contas daquele choque que a acumulação de energia da morte de Inês tornara inevitável. A peste procedia por arrombamento e aliviava à força a tensão dos músculos da alma; era uma velha cega que talhava ao acaso. Fica apenas por saber se o acaso é o arbitrário, se aquilo que é mister que suceda». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT