quinta-feira, 13 de junho de 2013

Séculos XII-XV. Estudos sobre a Ordem de Avis. Maria Cristina A. Cunha. «O casamento era encarado como uma forma de evitar tentações de luxúria e era aconselhado a solteiros e a viúvos, de ambos os sexos. Todos os casamentos, precisavam de licença prévia do mestre, sob pena do freire espatário perder a comenda ou a tença que usufruía»

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«(…) Tal como acontecia em outras instituições monásticas coevas, pelo menos a Ordem de Avis e a Ordem do Hospital tinham no seu seio, para além dos freires, leigos que, não tendo professado, aderiam às milícias, a quem davam todos os seus bens em troca de protecção material e benefícios espirituais: no caso de Avis, a prática de receber estes familiares prolongou-se pelo menos até ao século XIV; os hospitalários chamavam donatos a estes particulares leigos que procuravam junto da Ordem subsistência e protecção espiritual. Mas mesmo dentro deste sub-grupo havia diferenças, conforme a situação do leigo no momento em que fazia a sua donatio ao Hospital: assim, uns doavam in forma communi, isto é, entregavam bens antes de entrarem para a Ordem, ao mesmo tempo que cumpriam um período probatório. Diferentes destes eram os que tinham feito a donatio sub condicione, que eram recebidos como capelães, embora não tivessem ainda recebido a totalidade das Ordens sacras. Finalmente, havia ainda leigos que, por morte, deixavam os seus bens ao Hospital, recebendo em troca o hábito da Ordem e a permissão de serem sepultados nos cemitérios desta.
Se excluirmos as normas relativas aos rituais, nomeadamente de profissão e ingresso nas Ordens, desconhecemos como viviam os freires nos primórdios destas instituições de vocação religioso-militar. É, no entanto, de supor que a coexistência, a nível institucional, entre clérigos e cavaleiros não fosse fácil, não só porque os seus interesses eram basicamente diferentes, mas também devido à importância do seu estatuto no seio das milícias e à distribuição do património. Em Portugal, este estudo está ainda por fazer para a generalidade das Ordens nos séculos XII e XIII. No país vizinho, são conhecidos, por exemplo, os conflitos que cedo, primeira década do século XIII, estalaram entre os espatários e o prior-mor de Uclés.
Porque de instituições religiosas se tratavam, qualquer freire que professasse numa Ordem Militar formulava, no momento da sua adesão, três votos: pobreza, castidade e obediência. Estes conselhos evangélicos não eram exclusivos das milícias, mas adquiriam nestas um significado ligeiramente diferente do que se verifica nas restantes comunidades religiosas. O voto de obediência era naturalmente da maior importância dada a organização militar da instituição. Logo aquando da profissão, este dever era transmitido ao novo membro, procurando garantir a disciplina dentro da comunidade. Na Ordem do Hospital era exigida uma obediência total ao grão-mestre, o mesmo acontecendo em Santiago e em Calatrava, consequentemente, em Avis. Nesta última, a desobediência ao mestre era castigada com a suspensão do uso das armas e do cavalo durante seis meses, pena tanto mais pesada se pensarmos que ambos eram essenciais à função de um cavaleiro. Todos os freires estavam obrigados ao mesmo dever de obediência relativamente ao comendador-mor, no caso de Avis, e ao prior-mor, em Santiago.
O voto de castidade foi imposto por Cister a Calatrava logo em 1164. A infracção a este preceito seria duramente punida, já que além da destituição do(s) cargo(s) que ocupava, o infractor era enviado para um convento da Ordem, onde podia ser encarcerado. Além disso, a pena incluía também a perda de cavalo e das armas bem como a obrigação de comer no chão durante um ano, de três dias por semana a sua refeição consistir apenas em pão e água, bem como receber disciplina, castigos físicos, todas as sextas-feiras. O castigo seria ainda mais duro se o infractor fosse um freire clérigo. Também na Ordem do Hospital este preceito evangélico era observado e daí o cuidado em proibir a entrada na Ordem, como freire professo, daqueles que haviam contraído previamente matrimónio. Apenas na Ordem de Santiago o voto de castidade adquiriu características especiais, dado que era permitido aos seus membros contrair matrimónio. Contando, pois, com freires casados no seu seio, os espatários viram-se obrigados, neste ponto concreto, a reformular a Regra que lhes serviu de base, a dos cónegos regrantes de Santo Agostinho.
Assim, se aos freires clérigos era exigida a castidade total, aos freires cavaleiros casados aconselhava-se a castidade conjugal. Esta última não vedava os contactos entre os esposos, mas estabelecia períodos de abstenção sexual que coincidiam com os tempos e festas litúrgicas, tal como se exigia aos laicos de um modo geral. Nestes períodos, as mulheres dos cavaleiros deveriam recolher-se aos mosteiros femininos da Ordem. Esta marca de originalidade dos espatários relativamente às outras Ordens Militares encontra-se justificada na própria Regra:
  • o casamento era encarado como uma forma de evitar tentações de luxúria e, como tal, era aconselhado a solteiros e a viúvos, de ambos os sexos. Todos os casamentos, contudo, precisavam de licença prévia do mestre, sob pena do freire espatário perder a comenda ou a tença que usufruía. Por outro lado, mas com o mesmo objectivo, eram severamente punidas as relações extra-conjugais e as mancebias.
A presença das mulheres, ou viúvas, dos espatários, na Ordem fez com que, entre finais do século XII e meados do século XIII esta Ordem fundasse mosteiros femininos, onde eram também acolhidos os filhos menores dos cavaleiros, durante a ausência destes em guerra. Situados inicialmente longe da fronteira, estes mosteiros femininos mantiveram-se sempre alheios às actividades guerreiras, mas o património que conseguiram juntar tornou-os por vezes núcleos importantes da Ordem de Santiago. Em Portugal, existiu apenas um destes mosteiros, o de Santos-o-Velho, fundado em 1271, com património dotado pelo mestre». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT