segunda-feira, 10 de junho de 2013

Poesia. A Vida Breve. «Da verdade não quero mais que a vida; que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade. A minha vida é um barco abandonado, infiel, no ermo porto, ao seu destino. Porque não ergue ferro e segue o atino de navegar, casado com o seu fado?»

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Navios-fantasmas
O arabesco fantástico do fumo
do meu cigarro traça o que disseste,
a azul, no ar, e o que me escreveste,
e tudo o que sonhaste e eu presumo.

Para a minha alma extática e sem rumo,
a lembrança de tudo o que me deste
passa como o navio que perdeste,
no arabesco fantástico do fumo...

Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,
têm o brilho rutilante de astros,
navios-fantasmas, perdem-se a distância!

Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,
noiva-menina, as doidas caravelas,
ao ignoto país da minha infância...


O meu soneto
Em atitudes e em ritmos fleumáticos
erguendo as mãos em gestos recolhidos,
todos brocados fulgidos, hieráticos,
mm ti andam bailando os meus sentidos...

E os meus olhos serenos, enigmáticos
meninos que na estrada andam perdidos,
dolorosos, tristíssimos, extáticos,
são letras de poemas nunca lidos...

As magnólias abertas dos meus dedos
são mistérios, são filtros, são enredos
que pecados de amor trazem de rastros...

E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
a rir desfolha as pétalas dos astros!...


Nihil novum
Na penumbra do pórtico encantado
de Bruges, noutras eras já vivi;
vi os templos do Egipto com Loti;
lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,
frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
pelos poentes de nácar e brocado…

Mordi as rosas brancas de Ispaã
e o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,

triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida - o mesmo estranho mal,
e o coração - a mesma chaga aberta!

Sonetos de Florbela Espanca, in ‘Reliquiae’

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