quarta-feira, 19 de junho de 2013

Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval. José Mattoso. «O imaginário acerca do mundo dos mortos não se baseia apenas na concepção de forças invisíveis identificadas com os homens e mulheres que deixaram a companhia dos vivos, nem apenas na atribuição ao mesmo mundo do comportamento habitual dos poderosos…»

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Pressupostos mentais do culto dos mortos
«(…) Noutras culturas, ainda, as forças identificadas com os mortos aproximam-se mais do domínio do bem e do mal, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista moral. Os mortos, benfazejos ou malfazejos, conforme a sua acção produz efeitos positivos ou negativos, seriam os responsáveis pelo que de bem ou de mal acontece aos homens. Estamos, de novo, num domínio contíguo do anterior, mas mais próximo de concepções antropomórficas do invisível, sobretudo na medida em que personifica a actuação das forças da natureza e as explica concebendo o mundo invisível à imagem e semelhança da sociedade humana. Os mortos seriam, com efeito, como que a personificação de forças maléficas ou benéficas, ou de ambas, conforme decidissem castigar ou premiar os vivos. Uns mortos seriam intrinsecamente malfazejos, como os homens ou mulheres criminosos e perversos deste mundo; outros, radicalmente bons, como os bons patriarcas, as boas mães ou os bons chefes, e os homens e mulheres virtuosos da sociedade visível. É evidente a contiguidade de conceitos que presidem ao imaginário acerca da acção positiva ou negativa dos bons e maus mortos com aqueles que presidem ao imaginário acerca dos demónios, por um lado, e dos anjos e dos deuses, por outro. A construção mental do reino dos mortos projecta no Além as estruturas morais da sociedade.
Como é evidente, também, esta concepção acerca da acção dos mortos sobre o mundo visível constitui um dos principais fundamentos de todas as crenças religiosas. Por um lado, inspira as noções de bem e de mal e as prescrições morais que incitam a praticar o bem e evitar o mal. Por outro, determina as funções atribuídas aos especialistas do contacto com os mortos (ou com o invisível e as forças nele situadas), os xamanes, os feiticeiros, os sacerdotes, os gurus, os monges, o clero em geral, nomeadamente o privilégio da definição daquilo que é o bem e daquilo que é o mal, como aquilo que agrada ou desagrada aos mortos, às potências sagradas ou aos deuses. Em terceiro lugar, inspira as acções rituais por meio das quais os homens tentam influenciar as potências invisíveis, ou seja, os actos de culto e a liturgia. Com efeito, partindo do princípio de que os mortos se comportam como os homens, e sobretudo como os homens poderosos, os rituais destinam-se, em última análise, a captar a sua benevolência. Como é evidente, utilizam processos simbólicos de restabelecer a harmonia do mundo, ameaçada ou afectada pelo mal, neutralizam a força destruidora do sagrado ou a perversidade dos espíritos malignos, protegem contra as ciladas dos demónios, ou, se se preferir, dos mortos que se vingam nos vivos dos seus infortúnios, e que prolongam a sua vida criminosa para além da morte.

O imaginário acerca do mundo dos mortos não se baseia apenas na concepção de forças invisíveis identificadas com os homens e mulheres que deixaram a companhia dos vivos, nem apenas na atribuição ao mesmo mundo do comportamento habitual dos poderosos (com todas as variantes de bondade, perversidade ou arbitrariedade), mas também, sobretudo em sociedades mais evoluídas, nas experiências dos estados oníricos ou visionários. Nesse caso, os mortos aparecem como sombras, enviam as suas recomendações e mensagens através de sonhos, provocam terrores ou revelam coisas escondidas. Embora no imaginário que releva de uma experiência psicológica individual baseada num contacto (real ou fictício) com os mortos prevaleça a sensação de medo, registam-se também relatos que acentuam a experiência contrária. Não admira que estes tenham como protagonistas os bons mortos (ou os anjos e santos) e aqueles os maus mortos (ou as almas penadas, os condenados e os demónios). Mas pode também acontecer que o morto apareça para transmitir uma mensagem ou dar uma ordem, e nesse caso o terror que inspira resulta da especial autoridade de que é revestido, ou seja, dos terríveis poderes de decretar a vida ou a morte.
Nesse caso, o terror não vem da sua bondade ou perversidade, mas das convicções acerca dos seus poderes ocultos e sagrados. A sensação de medo, no entanto, parece prevalecer de longe sobre a de proteção ou de consolação, uma vez que se parte do princípio de que o morto traz normalmente a morte consigo. O contacto com ele é, portanto, especialmente perigoso. Daí a infinita variedade de rituais que procuram administrar o duplo sentido da relação com os mortos: presidem à reprodução da vida, mas também transmitem a morte. Os rituais do culto dos mortos destinam-se, portanto, a captar a sua benevolência, mas ao mesmo tempo a marcar uma fronteira tão intransponível quanto possível entre o seu reino e o reino dos vivos. Assim, por exemplo, o luto, ao marcar ou isolar os parentes que estavam mais próximos do morto, destina-se justamente a separá-los dos outros vivos, até que se dissipe o perigo da contaminação de morte que eles podem transmitir (não se trata, evidentemente, de uma noção biológica de contágio); as crenças acerca das almas penadas, que são propriamente aquelas que não conseguem encontrar repouso, ou seja, que não ingressaram no convívio com os antepassados, resultam sobretudo de elas serem como que mortos que não estão totalmente mortos, e que por isso, ao permanecerem na fronteira entre este mundo e o outro, perturbam e aterrorizam os vivos».

In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT