sábado, 8 de junho de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «Começa por ser preciso estabelecer uma regra idêntica para todas as comunidades que se consideram ‘cristãs’. A ortodoxia vai-se consolidando contra, e em função de, os diversos ‘erros’ como uma ilha de sedimentos que surge num mar de contradições»

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Maria Madalena e os Testamentos
«(…) Foi no Novo Testamento que primeiro surgiu uma personagem chamada Maria de Magdalo. É identificada com uma pecadora convertida que segue Jesus até casa de Simão, do Leproso, ou do Fariseu, lhe unge os pés e os limpa com seus belos e longos cabelos. Torna-se, também a primeira testemunha da Ressurreição, sozinha, ou na companhia de outras mulheres. Há algumas ambiguidades nesta representação. A tentativa de as esclarecer deu origem à escrita de centenas de tratados principalmente durante os séculos XVI e XVII. A dúvida era se Madalena seria uma única identidade, uma única mulher que aparecia nas várias cenas evangélicas, ou se os evangelistas se referiam a duas, ou mesmo três, mulheres diferentes. Teremos que considerar um outro aspecto mais complexo, que tem a ver com a fidedignidade histórica do Novo Testamento, com as possíveis datas de escrita e fixação dos textos e ainda com o momento da aceitação destes como cânone. Além disso, veremos que problemas podem suscitar algumas opções de tradução e como podem afectar a interpretação que se faça de Madalena.

Datações do Novo Testamento
O consenso geral é que as Epístolas de S. Paulo antecedem em cerca de vinte a trinta anos os textos do Novo Testamento. Estas Epístolas são tomadas como baliza por serem os escritos mais antigos que nos chegaram com garantia de autenticidade histórica. Isto quer dizer que os Evangelhos foram redigidos cerca de 60 a 80 anos depois da morte de Jesus. A redacção final dos Evangelhos de Mateus e Lucas deve rondar os anos 80-85 d.C.. O mais antigo dos evangelistas, Marcos, terá escrito o seu Evangelho entre 62-67 d.C. e o Evangelho de João datará de finais do século I. Sobre essas décadas determinantes possui-se muito pouca informação. Toma-se como boa fonte os Actos dos Apóstolos atribuídos a Lucas, que dão alguns detalhes sobre esse período. Já se descobriu que, afinal, foram escritos trinta anos mais tarde, quer dizer que são praticamente contemporâneos dos próprios Evangelhos.
Adianta-se desde já que em nenhuma das suas Epístolas Paulo refere Maria Madalena. Em muitas pede que defendam o rebanho contra os desvios à ortodoxia. É patente a sua preocupação com os problemas internos das comunidades a surgir entre os anos 80-100 d.C.. Assim, nascidos em finais do século I da era cristã, os Evangelhos só começam a ser sistematizados no século seguinte. Coincidem com o desenvolvimento da dogmática, o esforço de reflexão para organizar os princípios e regras cristãos que vão fundamentar a tradição apostólica. Esta tradição nasce de relatos escritos e orais que se perderam e que, de quando em vez, são em parte recuperados. Assim aconteceu com o Papiro Magdalen, um fragmento do Evangelho de S. Mateus recentemente descoberto entre os Manuscritos do Mar Morto, onde se registam excertos da cena de Pedro, datado do ano 70 d.C. ou talvez mesmo anterior.
Isto para dizer que se torna praticamente impossível, por enquanto, pelo menos, aceder com segurança às fontes evangélicas. Por outro lado, esta situação atesta que o papel dos evangelistas foi também o de historiadores preocupados em recolher os materiais acessíveis ao seu tempo, trabalhá-los, dar-lhes alguma consistência e perenidade. Para o nosso caso não interessa muito se existiram, ou não, textos anteriores que se tenham perdido, mas apenas que o corpus neo-testamentário, construído a partir de informações pré-existentes e em ambientes culturais não só diversos, mas sem comunicação clara entre si, oscila durante pelo menos dois séculos.
E dois séculos de enorme turbulência em todos os sentidos. Começa por ser preciso estabelecer uma regra idêntica para todas as comunidades que se consideram cristãs. A ortodoxia vai-se consolidando contra, e em função de, os diversos erros como uma ilha de sedimentos que surge num mar de contradições. Tem que se afirmar, primeiro que tudo e pelo menos:
  • contra a tradição judaico-rabínica a que Jesus pertencia; 
  • contra as religiões de mistérios ainda em força; 
  • contra as deturpações gnósticas; 
  • num tempo e espaço em que as comunicações eram morosas e difíceis, a sociedade praticamente analfabeta, falando as línguas mais diversas.
A descoberta recente dos Manuscritos do Mar Morto, a publicação dos Evangelhos Gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi, a celeuma ainda há pouco suscitada pelo Evangelho de Judas, dá-nos um pequeno vislumbre da caldeirada ideológica em que se moveriam os fundadores do cristianismo e da necessidade de se instituir, por escrito, um cânone dos textos sagrados aceitáveis. Assim, o Novo Testamento vem a estabelecer-se em pleno período helenístico, a partir de, e contra, outras versões contemporâneas, em particular as primeiras formulações de carácter herético.
  • Sabe-se que em finais do século II as Epístolas paulinas já estavam organizadas numa colecção; 
  • que era aceite a autoridade de Os Actos dos Apóstolos, hoje posta em causa; 
  • que tinham sido estabilizados como base teórica também os quatro evangelhos que conhecemos.
Sabe-se ainda que a selecção dos textos canónicos vai sendo feita de modo gradual e hesitante, com inclusões e exclusões, e por motivos nem sempre muito históricos no moderno sentido do termo. Ireneu de Lião (130-202 d.C.), argumentando por analogia a partir da existência de quatro elementos na Natureza, considera que os Evangelhos também não poderiam ser menos que quatro. Os Evangelhos do Novo Testamento aparecem registados nas listas elaboradas desde o Cânon de Muratori (Roma, c.180-200) mas entre outros textos que vão sendo sucessivamente recusados e eliminados por vários dos padres da Igreja. Por exemplo, o Codex Sinaiticus, do século IV, adiciona-lhe a Epístola de Barnabé e O Pastor de Hermas. Em 367 d.C., uma Carta sobre a Quaresma atribuída ao bispo Atanásio de Alexandria (295-373d.C.) listava os livros do Antigo e do Novo Testamento a serem reconhecidos pela Igreja, e quais os heréticos que haviam sido escritos de modo a parecerem contemporâneos dos apóstolos. O Codex Alexandrinus, do século V, acrescenta-lhe duas Epístolas aos Coríntios atribuídas a Clemente de Roma (Papa entre 88-90). O Codex Claromontanus, de Paris, do século VI, inclui a Epístola de Barnabé, O Pastor de Hermas, A Revelação de Pedro e os Actos de Paulo. Referem-se aqui estes textos porque eram conhecidos na Idade Média portuguesa e foram estudados por Mário Martins». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT