sexta-feira, 14 de junho de 2013

Jayme Magalhães Lima. Alexandre Herculano. «Céu livre, terra livre, e livre a mente, paz intima, e saudade mas saudade que não doe, que não mirra e que consola são as riquezas do ermo, onde sorriem das procellas do mundo os que o deixaram»

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Fascinação do Ermo
«(…) Ignorariam a cólera e maldições que pódem dimanar e dimanam dos prophetas do perdão e do amor. Era por isso que o poeta escondia as suas terriveis inspirações. Mostruosas para uns, objecto de ludibrio para outros, n'uma sociedade corrupta em que a virtude era egoista e o vicio incrédulo, ninguém o escutaria, ou, antes, ninguém o entenderia. A força moral da nação tinha desapparecido e a força material era apenas um phantasma; porque, debaixo das lorigas dos cavalleiros e dos saios dos peões das hostes, não havia senão ânimos gelados, que não podiam aquecer-se ao fogo do santo amor da terra natal. Com a profunda intelligencia do poeta, o Presbytero contemplava este horrivel espectáculo d'uma nação cadáver e, longe do bafo empestado das paixões mesquinhas e torpes d'aquella geração degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fél, d'ironia e de cólera a amargura que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos tempos em que era feliz porque tinha esperança, escrevia em lagrimas os hymnos de amor e de saudade.
No coração de Eurico, que parecêra morto, porque havia procurado o ermo, o enthusiasmo e a virtude nem um só instante se tinham todavia apagado; um surdo labor da sua alma perpetuamente os alimentava. Apenas mudavam as vidas a que se applicavam e consagravam. O vulgo, na inércia própria do acanhamento do seu espirito, não podendo alcançar os voos do sonhador, desconhece-os e injuria-os, reputando-os insensatez, delirio, uma dissipação inexplicável de faculdades preciosas; incapaz de prender o génio no circulo estreito dos seus interesses, imagina que o illuminado os despreza e atraiçoa, desamando-o, quando o viu elevar-se e perder-se n'uma atmosfera inaccessivel á debilidade commum das forças mortaes. O mundo nunca poderia entender plenamente o affecto que, vibrando-lhe dolorosamente as fibras do coração, arrastou Eurico para a solidão, quando os outros homens nos povoados se apinhavam á roda do lar acesso e fallavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos d'um instante.
De longa data, Herculano traçara a própria carreira na contemplação do filho do seu génio. Porque o conflicto da inspiração e do mundo é e será o mesmo, irreductivel, eternamente, heri et hodie, ipse et in secula. Se a inspiração veio alojar-se n'um pobre corpo humano, deixae-o, não cuideis mais do seu destino. E' só o tempo de percorrer a via dolorosa pela qual tem de seguir seus fados. O termo da jornada está previsto, e será o único que á sua condição convém, o isolamento e o espaço que a intensidade de irradiação reclama, provoca e determina nos astros ou nos prophetas, nas parcellas minimas da luz da matéria ou do espirito. Alexandre Herculano foi para Val-de-Lobos, não para morrer e sepultar-se ainda quente das palpitações do seu sangue, mas para viver inteiramente sua vida; não para deliberada cessação de actividade, mas para a sua mais perfeita expansão e mais lidima e bella applicação. Apenas eliminava relações e cousas que o atormentavam, estorvando-o de se manter continuadamente, face a face, na presença da aspiração intima.
Entrou no claustro que a seu modo edificou, naturalmente porque os das antigas communidades estavam prostituidos e em ruinas. Não lhe regateiára o mundo, atravez das injurias, as lisonjas que concede á inanidade vaidosa com a mesma insensatez e inconsciente impudor que usa na calumnia, na inveja e na flagellação do merecimento. Se não foi amortalhado em trajo de grande do reino, recamado de chaparia, foi porque constantemente repelliu de si esses symbolos de grandeza emprestada, cobrindo o mais das vezes uma real mesquinhez. O premio que buscava dos seus combates, aquelle que o alegraria, se os estranhos lh'o houvessem dado, era a communhão na sua fé, de que contrariedade alguma o arrancaria, e o fortalecimento nas suas virtudes, em cuja propagação se lhe figurava uma nova pátria, rejuvenescida para a gloria. E como essa communhão e essas virtudes não encontrou, senão em raros companheiros, desventurados como elle, e da outra, da communhão na sordidez em que os demais folgavam, estava excluido por aversão da sua alma, viu-se expulso do banquete, e foi alimentar-se ao longe, n'um recanto obscuro e impoluto, do pão grosseiro e bemdito da singeleza incorruptivel, a guardar o sacrário que Deus lhe confiara. Cantor da solidão, foi assentar-se junto do verde céspede do valle, e a paz de Deus consolavao do mundo.
Consolava-o, disse o poeta candidamente, imaginando carecer de consolo ao deixar o mundo. Não era assim. Os resplendores enganosos do mundo por que passou, somente para os aborrecer e desprezar, é que nunca poderiam furtal-o á fascinação do ermo. Na verdade, emquanto habitou esse mundo de torpezas é que necessitava compensação da violência imposta ás suas tendências e caracter, e compensação não alcançou.

Céu livre, terra livre, e livre a mente,
paz intima, e saudade mas saudade
que não doe, que não mirra e que consola
são as riquezas do ermo, onde sorriem
das procellas do mundo os que o deixaram.

Essas riquezas abandonara o apostolo, para partilhar com os homens dos bens que no seu peito abundavam. Os homens desconheceram-nos. Para que pois privar-se de benefícios preciosos, sem proveito do sacrifício para os desvairados no tropel da ruindade impenitente?!...»

In Jayme de Magalhães Lima, Alexandre Herculano, DD 5369 H4M3, Typographia F. França Amado, (rua Ferreira Borges, 115) Coimbra, 1910.


Cortesia de Typographia França Amado, 1910/JDACT