quinta-feira, 13 de junho de 2013

Henrique. O Infante. Memória Histórica. Alfredo Alves. «Fr. João Xira, eloquentemente, em sermão, revelou ao exercito o fim da empreza e em mais de um coracão houve um descoroçoamento. Combater em Africa?! Era a primeira vez…»

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A Tomada de Ceuta
«(…) Anoitecia; a penumbra do crepusculo assemelhava-se a um phantasma estendendo-se no quarto da moribunda; para o poente uma lividez sinistra era a coloração do horisonte; as empenas das portas rangiam com a ventania forte. - De que lado sopra o vento? - perguntou a Rainha.
D. Duarte, carinhoso, a seu lado, respondeu: - Do Aguião, senhora. - É bom vento para a vossa partida. - Senhora, sim. - Pois ireis em dia de San Tiago. E cerrou os olhos, como que a adormecer, sorrindo.
No dia seguinte o momento fatal approximava-se. O monarca João entrava no quarto a estalar de soluços; os filhos levavam no para fora, consolando o; D. Filippa dirigia ao esposo um olhar de indizivel dôr, não podendo morrer. Os Infantes disseram ao pae que se retirasse; que se poupasse a tao grande dor. Reuniu-se conselho e deliberou se que o reo João fosse para Alhos Vedros. Amparado pelos filhos veio o heroe de Aljubarrota receber o ultimo abraço da esposa. Como louco, montando a cavallo, fugiu depois desorientado. E D. Filippa, de costas, no leito, mãos erguidas sobre o seio, tinha visões mysticas; apparecia-lhe Nossa Senhora a chamal'a, la do céo. E a tremer de goso a sua voz dizia , a custo: - Grandes louvores sejam dados a vós, minha Senhora, porque vos prouve de me virdes visitar do alto. Mudaram-a de cama, para morrer; commungou; foi ungida; ouviu rezarem-lhe em torno ao leito o officio dos mortos e finou-se. E os Infantes, frontes curvadas, lacrimosos, sahiram um a um do aposento. Na corte tudo foi tristeza; e até deu-se a coincidencia de n'esse dia da morte de D. Filippa haver um eclipse de sol, o sol ser cris, como então se dizia.
Depois dos funeraes, comecou a correr voz que a morte da Rainha era agouro do mau successo da empreza. Para que servia tao grande armada? murmurava o povo. No emtanto as galés e naus, fundeadas no Tejo, velas colhidas, sem flammulas nem galhardetes, a marinhagem n'um silencio triste, esperavam. Mas, de repente, dias depois do fallecimento de D. Filippa, içaram se nos mastros balsões e divisas, começou a azafama na multidão de galeotes e pitintaes, tangeram garridamente as trombetas, em ar de festa. O povo de Lisboa correu a beira do rio, espantadissimo. E no mesmo instante appareceu rio abaixo a galé do infante Henrique e n'ella o mesmo Infante, todo vestido de gala, e da mesma forma seus escudeiros e remadores. - O nosso Rei perdeu o siso! - diziam uns aos outros com espantos. - Sao artimanhas do Prior! - observava um, desconfiado. - Peste para elle! - rugiam alguns que ouviam o dito. E todos desapprovavam o proceder do Rei e dos Infantes. João I appareceu depois tambem a desembarcar no Restello; viera na galé do conde de Barcellos. Multidão enorme accorreu á praia, anciosa, de noute, com tochas. Sempre era certa a partida. Para que? inquiriam uns. E para onde ? interrogavam outros. E as almas retrahiam-se com o vago terror de perigos imminentes. E como a peste e fome flagellavam, e a Rainha havia morrido, e o sol estivera cris, todos diziam que o rei João ia buscar a perdição sua e do reino. Effectivamente ia ter lugar a partida da expedição.
Duvidara se algum tempo d'ella, após a morte de D. Filippa; reunira-se conselho, dividiram se as opiniões; sete diziam que se fosse á empreza, outros tantos que ella se adiasse. Pertencia a estes o Condestavel; João I e o Infante ficaram admirados da prudencia do heroe. Mas o infante Henrique todo se empenhou pela ida; lembrou as ultimas vontades da Rainha - ella dissera que partissem em dia de San Tiago; suggeriu a ideia de se vestirem de gala para levantar os animos: observou que seria um desaire deixar de executar immediatamente o que de tanto tempo já vinha preparado… João I escutou e assentiu no que Henrique lembrava; era o filho que mais se parecia com elle, bem o sabia. Todos depois apoiaram o decidido pelo Rei. O infante Duarte, esse, mais sentimental, guardou silencio, e sempre triste pensava na morte.

Com toques de trombetas e clamores, parecendo alegres, abalou a armada Tejo a fora, a 24 deJulho; e como um bando de gaivotas voando baixas, rente á superfície azulina do mar, os navios foram traçando uma curva alvejante até perderem-se de vista ao longe, encobertos pelos fraguedos de Cezimbra. Foram seguindo ao sul até á abra de Lagos. Fundearam ahi e o Rei desembarcou. Fr. João Xira, eloquentemente, em sermão, revelou ao exercito o fim da empreza e em mais de um coracão houve um descoroçoamento. Combater em Africa?! Era a primeira vez; havia um certo receio; eram inimigos desconhecidos da geração do Mestre de Aviz os infieis.
E de noute, ao scintillar das estrellas, pensava-se com saudade nos lares distantes. Era preciso, comtudo, partir; e assim todos fizeram. Foram a Faro e ahi, de noute, deu-se o seguinte caso na galé do infante Henrique; deitara-se o infante Duarte na coberta, a dormir, pois era grande o calor; mas acordando casualmente notou que a lanterna do barco se incendiara; ergueu-se o Infante e dirigiu-se a chamar o irmão Henrique, que immediatamente acudiu e lançou a lanterna ao mar, queimando-se nas mãos quando isto fez. No sabbado foram lançar ancora em Algeziras; timidos, os mouros d'ahi enviaram a João I seus presentes. E no emtanto a armada aproou ao Estreito, em comprida fila, como uma serpente. Passou ella, em meio de nevoas, por defronte de Tarifa; aqui imaginou-se que pelo mar deslisava uma ronda de phantasmas.
 - Que e aquillo? - inquiriam, das muralhas, olhando o mar, os de Tarifa. - Uma armada; decerto a do Rei de Portugal. – Impossivel - affirmava o fronteiro Martim Fernandes de Porto Carrero - nem todas as florestas de Portugal podiam dar madeira para uma frota tão numerosa. Mas um portuguez, que alli se achava, insistiu: que sim, que era a frota. E effectivamente, desprendendo-se os sendaes do nevoeiro, surgiu toda a armada, passando em frente, como um traço branco a regrar o horisonte. E assim foram indo até Malaga.
Em Ceuta, Zala-ben-Zala, o scheik; mandara convocar os kabilas, receioso da armada dos portuguezes; e entre a multidão dos mouros os terrores agoureiros perpassavam frios a gelar as almas; no Ramadan a lua estivera tres partes cris, e na outra tivera perto de si uma estrella enorme; havia alguem que sonhara vêr a cidade toda recoberta de abelhas; outro imaginara tambem em sonhos ver chegar pelo Estreito um leao coroado, com muitos pardaes a seguil'o. Outros mais fallavam em signaes precursores de desditas espantosas. E o scheik; mandara convocar os astrologos, sabedores das cousas do céo e dos futuros. Veiu a conselho o venerando Asmed-ben-Sille, almocadem de Tunis; durante duas horas o velho sabio nao pronunciara palavra, e a final, instado, só dissera que haveria sangue… porque a estrella Orion se mostrava em forma de espada. E tudo tremeu de inquietação».
In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Memória Histórica, Primeiro Pémio de Concurso no 5º Centenário, Typografia do Commercio do Porto, G 286, H5A53, Porto, 1894.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT