sábado, 29 de junho de 2013

Cântaro que vai à Fonte. Coisas do Tempo Presente. Cunha Leal. «Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um acto de violência. A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres»

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In Memoriam do papa João XXIII
«Que, através de todas as manifestações do seu pontificado e, em especial, em sua última e luminosa Encíclica, Pacem in Terris, procurou dulcificar a amargura espiritual da infindável legião das gentes humilhadas e ofendidas, que têm fome e sede de liberdade, de justiça, de pão, de educação, de segurança e de consideração social, instilando em seus corações o conforto de uma esperança. A ele, que, para conseguir tão nobre objectivo, não hesitou em castigar a filáucia de ovantes disfrutadores de uma Autoridade e um Poder, instituídos por Deus como condição sine qua non de paz e progresso nas sociedades humanas, mas de cujo exercício esses hierarcas nem sempre são dignos, por não saberem manter-se dentro de moldes sensatos e respeitadores da pessoa humana.
A ele, que, serenamente, inseriu nesse excelso documento, entre incontáveis verdades, as que, a seguir, se transcrevem:
  • Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano: nela vêm as pessoas coarctada a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a procurar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento;
  • A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um acto de violência;
  • De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil constituída para o bem comum de todos, verdade já enunciada pelo papa Leão XIII; 
  • A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres;
  • Exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos. Atesta a experiência que, em faltando por parte dos poderes públicos uma actuação apropriada com respeito à economia, à administração pública, à instrução, sobretudo nos tempos actuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo o seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever; 
  • O poder judicial administre a justiça com imparcialidade humana, sem se deixar dobrar pelos interesses de uma parte; 
  • O sucederem-se os titulares nos poderes públicos impede o envelhecimento da autoridade e assegura-lhe a renovação de acordo com a evolução social;
  • Um acto de grandíssima relevância efectuado pelas Nações Unidas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem... Contra alguns pontos particulares da Declaração foram feitas objecções e reservas fundadas. Não há dúvida, porém, de que o documento assinala um passo importante no caminho, para a organização jurídico-política da comunidade mundial. De facto, no modo mais solene, nele se reconhece a dignidade de pessoa a todos os seres humanos, proclama-se como direito fundamental da pessoa o de se mover livremente em busca da verdade, na realização do bem moral e da justiça, o direito a uma vida digna e defendem-se outros direitos conexos com estes.
A essa figura contemporânea, com palavras do tempo presente, que Portugal saiba compreender e aplicar, sem tortuosos desvirtuamentos e sem temor».

In Cunha Leal, Cântaro que vai à Fonte, Coisas do Tempo Presente, Sociedade de Língua Portuguesa, Edição do Autor, Lisboa, 1963.

Cortesia de SLPortuguesa/JDACT