terça-feira, 25 de junho de 2013

A Mesa dos Reis de Portugal. Casos e Ofícios da Mesa. Séculos XIII a XVI. Rita Costa Gomes. «O ‘saquiteiro’ distribuía rações de pão cozido, o ‘manteeiro’ determinava o mantimento que cabia a cada morador, enquanto o ‘iguador’, referido na documentação de Dinis I procedia a uma distribuição equitativa segundo o direito de cada um»

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«(…) A separação no serviço da cozinha, explicitamente mencionada nesta fonte portuguesa, é conhecida para o contexto castelhano, nomeadamente para a corte de Sancho IV de Castela, e também na corte dos monarcas aragoneses, a partir do reinado de Pedro II de Aragão. A cozinha da corte em Portugal dispunha na década de 1250 de, pelo menos, dois cozinheiros e um escrivão, e na copa serviriam igualmente dois homens. Alguns oficiais menores são mencionados nestes textos prescritivos e nos registos de contabilidade, como o referido comprador da ucharia e vários escrivães da cozinha e da copa, o que demonstra uma burocratização em curso dos departamentos da Casa do Rei ligados à administração e à transformação dos alimentos. Associada ao fabrico do pão para a mesa real, surge ainda a regueifeira do rei e a da rainha, cuja integração nos serviços da cozinha, no entanto, não é explícita nas fontes. Ofícios com atribuições menos definidas, mas já constantes em textos da centúria de Duzentos incluem o saquiteiro, o manteeiro, o iguador e o arinteiro.
A distinção entre o estudo da comensalidade propriamente dita, ou seja, o uso de refeições em comum, e o estudo dos alimentos como forma de sustento ou remuneração associados a uma presença na corte toma neste ponto da nossa análise toda a sua utilidade. A normativa do século XIII revela-nos, afinal, todo um mundo de obrigações e restrições associadas ao desempenho de funções e ofícios na corte, cuja remuneração se fazia em alimentos. Mas as fontes referem também como o círculo dos convivas do rei podia alargar-se de um modo que Ír6tes textos é julgado excessivo pelos monarcas. Sinal da importante transformação cultural, a regulamentação das prestações de alimentos na corte insiste no número exacto de servidores e de animais que cada oficial teria direito a sustentar à custa do rei quando se integrava no séquito real. O copeiro podia trazer dois homens apenas, e a cozinha ou a copa apenas teria sustento para uma besta de carga por cada departamento, contrastando com as seis que transportariam a repostaria, por exemplo. As leis de 1258 estabeleciam que o rei não tinha de dar cevada (para as bestas) nem ração aos homens de fora sobrevintes, isto é, aos homens que se apresentassem na corte vindos de fora, senão àqueles que são moradores del-rei.
É curioso observarmos que, à medida que os monarcas parecem mais atentos aos custos materiais de toda a estrutura que rodeia a comensalidade e o sustento da corte, a imagem de uma magnificência e solenidade distintiva se cristaliza na cultura do tempo. Na sua expressão mais simples, o arranjo da Casa Real surge referido pelas fontes lierárias em associação com a figura do rico-homem com pretensões a uma vida aristocrática, como na famosa cantiga de escárnio do trovador português Pêro Gomes Barroso (c.1248-1273), que viveu na corte de Afonso X de Castela: ... traz alferes e traz pendão... / traz tenda e traz manjar / e sua cozinha, onde faz seu jantar... / traz reposte, e traz escanção / e traz saquiteiro, que lhe dá pão... / traz seu leito e seu cobertor / e jograrete, de que há sabor… Esta estrutura mínima, que como vemos inclui um serviço de copa e de cozinha, serve para significar na poesia trovadoresca o próprio modo de vida cortesão.
Os três primeiros ofícios, saquiteiro, manteeiro e iguador, parecem estar relacionados precisamente com tarefas de distribuição e medição dessas rações ou pagamentos que no séquito real se faziam ainda, ao que tudo indica, em géneros de comida e de bebida. Como e em que condições, eis o que pode revelar-nos o estudo das práticas de comensalidade. O saquiteiro distribuía rações de pão cozido, o manteeiro determinava o mantimento que cabia a cada morador, enquanto o iguador, referido, por exemplo, na documentação de Dinis I (r.1279-1325) procedia a uma distribuição equitativa segundo o direito de cada um, possivelmente também no âmbito das refeições comuns. Estas hipóteses de interpretação atendem, como nos parece adequado, aos usos da comensalidade que observamos nas cortes desta época. Conheciam-se, com efeito, nas cortes ibéricas do século XIII e XIV, ocasiões análogas ao epulum, ou banquete público tardo-romano, geralmente banquetes realizados várias vezes no ano em momentos prescritos do calendário, ou como parte de festividades associadas a inaugurações régias, casamentos ou baptismos da família real. O vocábulo convite, por seu turno, generaliza-se no século XIV para designar a refeição real solene tomada em sala com a participação daqueles que viviam integrados no séquito real, e associando outros círculos mais ou menos vastos de convivas temporários ou de hóspedes. Para estas ocasiões se transportava a rica baixela destinada a ser usada e exposta, cuja quantidade nos impressiona, por exemplo, ao analisarmos o inventário da Copa e da Escançaria itinerantes do rei Dinis I. Não surpreende, pois, que este monarca tivesse ao seu serviço dois arinteiros, ou guardas da baixela de prata». In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT