quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Sangue. O Vento. A Guerra. Contos. Gonzalo T. Ballester. «… como sei eu de onde vem o que sou, ou, pelo menos, o que tenho? Os meus lábios e a minha testa, os meus longos pés ou esta maneira de andar amarrecada. Do fundo dos séculos e dos sangues, mas sem nome, ou sem verbete»

jdact

O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«Agora que a necessidade não me desperta a horas tão urgentes, às vezes demasiado matinais, sempre temidas, costumo ficar, já acordado, na cama: um bom bocado, de manhã, não por preguiça, que nunca fui preguiçoso, mas sim despistado, o que não é a mesma coisa, antes pelo gozo que me causam a posição e o calor, a posição de um feto avançado e o calorzinho a que se chama pré-natal, ou coisa parecida, o ponto justo do que é preciso para o equilíbrio térmico da alma, ou pelo menos do que preciso eu, que é de quem me ocupo, o sujeito que goza. Em tais situações, acontece-me que de alguma parte ignorada do meu íntimo, provavelmente aquela a que devo tudo, me chega como uma rebentação a vontade de obnubilar a consciência, embora talvez fosse melhor dizer de a mudar, de clara e superficial, em obscura e profunda, e de ver se nessa posição o meu corpo cria raízes que de novo, embora já arde, o religuem ao corpo de minha mãe, e, através dele, a tudo quanto do passado paira no meu sangue, a tudo o que o sangue arrasta na sua torrente e não lhe pertence senão por herança: bacia fluvial inimaginável, lá para trás, para as origens, densa rede de mananciais inexplorados, sei lá de que veios, de que caudais virá. Não é difícil recordar, pela história, o passado, mas ignoramos os métodos de o recuperar pela biologia. A que o sangue canta é canção sem palavras, e dos meros ritmos pouco se pode inferir, salvo a música do cosmos. Quando escrevi, há já alguns anos, a história de Juan, pus o meu personagem perante os seus antepassados, de modo que lhe fosse possível perseguir a transmissão de uns aos outros, e as suas alterações ao longo da viagem, do nariz daquele Tenório em que os outros tinham origem: a estirpe, nascida chata, terminou em aquilina.
Mas eu, que pelo caminho do sangue não consegui sair de mim próprio, nem sequer recordar essa felicidade que, segundo dizem, precede algum tempo o nascimento, também não o alcancei pelo caminho da história, pois as notícias dos meus maiores, que não foram ilustres, pouco remontam além de duas gerações, e são mesmo assim incompletas e insubstanciais, já que alguns se empenharam em não deixar de si mais testemunho que o seu nome. Ou nem sequer lhes ocorreu fazê-lo, visto que eu era imprevisível, e, comigo, as minhas fantasias. Quando de manhã, ao fazer a barba, me ponho diante do espelho, vejo nele, umas vezes minha mãe, outras meu pai; vejo-os claramente no meu próprio rosto, que por igual lhes pertence, e saúdo-os e peço-lhes que continuem a ser pacientes e me esperem um pouco mais, não demasiado, o razoável. Essa cara cambiante, este corpo algo mais do que matéria, forma também, provêm de ambos, e bem poderia separar o que lhes pertence e pôr-lhe verbetes. Mas como eles, por sua vez, o receberam de seus pais, e assim desde trás, de pais e mães sem conta, para mim sem rosto, como sei eu de onde vem o que sou, ou, pelo menos, o que tenho? Os meus lábios e a minha testa, os meus longos pés ou esta maneira de andar amarrecada. Do fundo dos séculos e dos sangues, é, claro, mas sem nome, ou, pelo menos, sem verbete.
Não me encontro no mundo, nunca me encontrei, tão solitário como aquele que vagamente sabe da sua origem, ou que a ignora, mas tão-pouco como esse outro que, tal como na Bíblia, recita a ladainha dos seus antepassados, sem faltar um, ainda que apenas os da linha paterna, pois com a da mãe, grave erro! É costume ser-se mais indulgente. Se a verdade está na biologia, não me serve. Mas a história não me autoriza a deslocar-me para trás, não me deixa dar saltos nem perder-me em conjecturas. Ainda que a posição fetal e o calor pré-natal sejam recuperáveis, não podemos sair de nós próprios. Ainda que os documentos estejam aí para quem quiser investigá-los, do que eu preciso não é de nomes de registos paroquiais, mas sim de biografias, e, essas, ignoro-as». In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.

Cortesia de Caminho/JDACT