segunda-feira, 20 de maio de 2013

O Príncipe Constante. Pedro Calderón de la Barca. O Infante Santo. Maria Idalina Rodrigues. «Historicamente correcta, essa sim, “a vinda da ossada para a Batalha”, como seria de esperar. (…) uma biografia sua nos fora já legada por ‘frei João Álvares’ (1406?-1490?) que, em Fez, acompanhou o Infante durante onze anos»

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Com Camões na encruzilhada
«(…) Malogradas as prometidas negociações, de Arzila foi então o cativo levado para Fez, ainda por escrito dando contas das ásperas mudanças que em seu cativeiro já começava de receber, pedindo-lhe, ao irmão, rei Duarte, sua redenção com palavras assim de razão e piedosas (…). Morre o monarca, termina Rui de Pina esta crónica e, na seguinte, de D. Afonso V, depois de vários capítulos que abarcam problemas da regência e do reino em geral, incluindo referências à questão de Tânger, no LXXXIII, põe-nos a par da morte do infante Fernando, em 1443, de quem afirma que certo de crer he pyadosamente que morreo santamente, e com esperança de ser Santo e bem aventurado, tendo Deus, por ele, feito evidentes millagres; sofreu com a aspereza do trato e máo cativeiro, servindo em ofycios baxos e vys, acabando seus dias numa mazmorra e prysam muy escura; esteve o corpo, num ataúde pendurado por cadêas, sobre uma porta da cidade de Fez até que, em 1473 vieram os seus restos por convençã para Portugal, onde jaz no Mosteiro da Batalha, prosseguindo a senda milagrosa anteriormente iniciada.
Fácil de concluir, sem desdouro para ninguém. Predisposição para o martírio já esboçada na mais provável fonte de Camões? Não parece, antes tentativas várias para a redenção. Entre as virtudes, se não um rol de méritos iniciais, pelo menos, a paciente resignação, talvez, a partir do facto consumado do perpétuo cativeiro. Milagres? Deles não fala o épico, mas a Rui de Pina parecem não ter escapado e deles se voltará a falar, com eles teremos de nos contentar, por enquanto, como indicadores da santidade que cedo começa a pairar como apanágio do Infante, apesar de muito não termos concluído sobre o seu intento de cruzada, nem sobre visões e confortos celestes termos tido qualquer conhecimento. Para à verdade não faltarmos, acrescentemos ainda que bem pouco esclarecidos ficamos sobre a dimensão do seu apregoado patriotismo em posteriores versos que valem por si mesmos.
Historicamente correcta, essa sim, a vinda da ossada para a Batalha, como seria de esperar. Prossigamos, porém, lembrando que o cronista oficial não foi o primeiro a passar a escrito as desventuras do príncipe cativo, uma biografia sua nos fora já legada por frei João Álvares (1406?-1490?) que, em Fez, acompanhou o Infante durante onze anos; libertado em 1448, voltou em 1450 ao norte de África e conseguiu trazer as vísceras do infante Fernando, que, com algumas cumplicidades, havia escondido, seguindo-as, já como inestimáveis relíquias, até ao Mosteiro da Batalha. Do seu Trautado da Vida e Feitos do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando conserva-se um manuscrito na Biblioteca Nacional de Madrid que, editado em 1911 por Mendes dos Remédios, tem desde 1960 uma mais correcta versão. De uma edição de 1527, diferentemente intitulada, corregida e emendada por Ierónimo Lopez escudeiro fidalgo da Caza delRey Nosso Senhor apenas nos resta a informação de Barbosa Machado, mas de uma outra, de 1577, reuista e reformada ora de nouo pelo padre frey Hieronymo de Ramos, encontramos exemplares em quatro bibliotecas, entre as quais a Nacional de Lisboa e fácil nos é consultá-la no mesmo volume que integra a mais actual edição do manuscrito.
Sem sabermos ao certo que emendas devemos atribuir a Jerónimo Ramos, uma vez que desconhecemos o texto de 1527, do cotejo entre o manuscrito editado e a obra de 1577, fica-nos a convicção de que poucas alterações foram feitas, embora uma delas nos vá merecer relativa detença. Trata-se claramente de obra sob encomenda, com matizes por demais evidentes de narrativa hagiográfica tardo-medieval, aparecendo-nos a figura do protagonista qual Cristo virtuoso e sofredor, nas atitudes, nos tormentos, na dádiva de si.
Depois dum capítulo introdutório que com o autor tem a ver, diz-se-nos do miraculoso nascimento do Iffante Dom Fernando, e inventariam-se, com cuidada mas sóbria concretização, as suas virtudes:
  • a religiosidade,
  • a humildade,
  • a caridade com o próximo,
  • a honestidade,
  • a castidade e algumas outras, tanto teologais como morais.
Com alguma brevidade são relatados os factos que levaram ao cativeiro, sem lugar para demonstrações de alguma ambição por parte de Fernando, e será neste que frei João Álvares e o editor de 1577 propositadamente se demorarão. Os vexames entre Tânger e Arzila, a crueldade no trajecto entre Arzila e Fez, a vida na masmorra, os ferros, a solidão final, os trabalhos em estrebarias e ruas serão impressivamente desdobrados, a par das traições dos mouros aqueles menistros de Satanas e dos avanços e recuos nas sempre goradas diligências para o resgate. Milagres também os há e não são para desprezar. Acompanhando frei Jerónimo Ramos (já que ao manuscrito faltam alguns fólios), sabemos de estranhas claridades, da conversão de um renegado, de curas, enquanto o corpo se encontrava exposto nos muros de Fez; sabemos de uma Beatriz Álvares que confirmou uma espécie de multiplicação dos pães (de trigo), em época de carência, e de mais curas, quando as vísceras já tinham sido trazidas para Portugal». In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.

Cortesia de Via Spiritus/JDACT