quarta-feira, 15 de maio de 2013

Evocação Histórica. Cardeal-rei Henrique, o Homem e o Monarca. Mário Domingues. «… chegou ‘Salvador Medeiros’, criado do cardeal, que entrara na batalha por um capricho do acaso e escapara da morte e do cativeiro por outro capricho da sorte. Mas nada adiantou. Estaria vivo e prisioneiro ou morto?»

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As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«(…) As mulheres corriam em lágrimas para as igrejas. Dir-se-ia não haver pessoa que não tivesse em África, metidos naquela estúpida aventura, um filho, um pai, um esposo, um parente amado ou um amigo querido. A dor confundia-se com a indignação e havia quem amaldiçoasse aquele rei Sebastião, que aliás nunca fora popular, por ter passado todo o seu reinado a cometer imprudências, a última das quais fora a de atirar-se para aquele servedouro de Alcácer Quibir, que ameaçava absorver a independência do reino. Só a 18 ou possivelmente a 19 de Agosto, chegou Salvador Medeiros, criado do cardeal, que entrara na batalha por um capricho do acaso e escapara da morte e do cativeiro por outro capricho da sorte. O cardeal Henrique tinha-o mandado a Arzila cumprimentar o sobrinho. Desembarcara naquela praça, já depois do rei Sebastião ter abalado com o exército em busca do Maluco; mas, em contrapartida, encontrara Afonso Correia, que vinha de Almenara, onde o conselho dos capitães resolvera retroceder, se acaso a esquadra ainda não tivesse largado de Arzila para Larache, como o monarca lhe ordenara.
Por infelicidade dos portugueses, os navios já tinham partido e o avanço tinha de prosseguir. Então, Medeiros, seguindo na companhia de Afonso Correia, foi juntar-se ao exército, entrara na batalha, assistira ao desastre e, apenas ligeiramente ferido, conseguira voltar a Arzila, com um reduzido rancho de fronteiros de Tânger, e reembarcar de volta a Portugal na mesma caravela que o levara à África. As suas informações de testemunha ocular só puderam confirmar o desbarato completo da expedição; nada adiantaram, porém, acerca do soberano. Estaria vivo e prisioneiro ou morto?
Era aflitiva a falta de notícias, não só acerca do monarca Sebastião, mas também dos milhares de combatentes. Dir-se-ia que o exército se sumira bruscamente num pântano. Resolveu o cardeal Henrique enviar cartas ao duque de Bragança, ao conde de Tentúgal e a outros fidalgos ausentes de Lisboa, chamando-os urgentemente à corte. E como se ignorava o paradeiro de Sebastião, encarregou Simão Gonçalves Preto, chanceler-mor, e os desembargadores do Paço, Gaspar Figueiredo, Jerónimo Pereira Sá, Manuel Quadros, Paulo Afonso e Pedro Barbosa de estudarem o problema da sucessão, de harmonia com o Direito. E foram eles de parecer que nem o sacerdócio, nem o capelo impediam o cardeal de suceder no trono. Mas, na incerteza de Sebastião ter falecido, devia o cardeal Henrique ser proclamado curador, governador e herdeiro do ceptro, como parente mais próximo do monarca. Acrescia ainda que, extinto o ramo do primeiro filho do rei Manuel I, a herança tinha de recair logicamente no único filho vivo do Venturoso.
Leu-se este parecer, assinado por todos, na cerimónia da proclamação, celebrada a 22 do mesmo mês, no palácio dos duques de Bragança, onde o cardeal pousava, perante os principais fidalgos que se encontravam em Lisboa, alguns prelados, membros dos altos tribunais e vereadores da Câmara. Conta o cronista, frei Manuel Santos, que o cardeal Henrique, pronunciando um discurso, entre lágrimas, rematou deste modo:
  • Mas já que Deus deu este tão grande açoite por pecados nossos, parece que a mim coube a maior parte dele, tanto pela dor que sinto de meu sobrinho, que de força deve ser morto, ou cativo, como por me eu agora sacrificar em tomar o peso do amparo do Reino, posto em estado de tão grandes trabalhos, e eu já debilitado, sem forças, não me ficando mais tempo, que para tratar da morte, a que já me vedes tão vizinho.
In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT