terça-feira, 14 de maio de 2013

Era a Revolução. Júlio Conrado. «O filho da p… do Lopes, (‘estarei enganado no nome? Não será outro P?’) de megafone em punho, braçadeira a comandar as hostes, imagine-se. Um sorriso. Um sorriso na tarde, com endereço…»

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«(…) Logo na tarde desse dia aquel'outra mulher que agitava por cima das cabeças dos do seu bando um bocabo de pão o levou a esquecer a da madrugada. Um bocado de pão? Um bocado de pão. Casqueiro de segunda, rijo, negro. Chegara de terra longínqua, triste, seca. Do deserto. Por isso os foliões da política a saudaram com um calor positivo e grave. Reparando melhor, certificaram-se de que nos joelhos, nas mãos, nas maçãs do rosto, trazia sinais de lepra. Procuraram isolá-la do corpo da manifestação sem contudo a expulsarem dela, enquanto de boca em boca era comentada a sua presença com veladas exclamações de horror. Os organizadores do desfile foram peremptórios: era preciso salvar as aparências, custasse o que custasse. Ela era um trunfo tão decisivo, o deserto, o casqueiro, o aspecto, para que tudo se passasse como fora previsto, para que tudo parecesse como era preciso que parecesse. Na manhã seguinte, os jornais afectos aos optimistas publicar-lhe-iam a fotografia nas primeiras páginas, com relevo para o pedaço de pão que não parara de agitar acompanhada de grandes títulos em caixa alta. Não diriam, porém, uma única palavra acerca dos motivos que levaram os radicalistas pequeno-burgueses, finda a manifestação, a correrem como loucos, para as urgências dos hospitais, a desinfectarem-se.
Antes de ela partir para a sua terra distante, seca e triste, Bernardes, distraído, sem suspeitar da natureza do pavor que pusera em debandada tantos propagandistas da luta contra a fome, propôs-lhe fazerem amor no apartamento dele. Para começar a esquecer Alda no concreto. A mulher esteve sempre muda. Acompanhou-o e, na penumbra do quarto, despiu-se. Manteve-se nua durante alguns segundos. Bernardes desceu então ao pormenor, fazendo aparecer a luz, fazendo-se luz no seu espírito. Púbis em chaga disforme. Horror! A pobre voltou a vestir-se e, sem falar, abalou.

Um sorriso. Um sorriso na tarde, com endereço. A classe operária mobilizada no Terreiro do Paço. Esgaravata, Bernardes. Esgaravata. Busca a verdade, busca. Talvez aqui, junto a estes. Puros. Escuta-lhes as receitas infalíveis para os teus pesares e suplícios. Parecem dignos. Um pouco convencidos de que sabem tudo do mundo, mas dignos. Dezenas de respeitáveis fantasmas alimentam a sua sinceridade. Dezenas? Que digo! Milhares. Os de Outubro, Cantão, Moncada. Põe de lado a ideia de que Salazar tem mais a ver com a revolução proletária portuguesa do que Fidel. Que não entender isto é evitar deliberadamente o nó do problema. Bebe do que eles bebem, verás o que eles vêem. Nada perguntes. Quem pergunta leva roda de provocador.
Aceita. No aceitar é que está o ganho. Põe, Bernardes, no sorriso, apreço onde está ironia. Será o sorriso de outra alma, de uma súbita vitória. Deixa por ora Alda e o velho. Entrega-te. Bebe e bebe. Dá as mãos. Forma cordão. Rompe. Avança. Morde as palavras novas. Raiva, homem. E um justo ódio por estandarte. E uma justa luta à sobremesa. E um justo prémio dentro de cem anos. Havia mesmo ali lugar ao espanto, olaré! Bernardes, varado, nem queria acreditar. O filho da p… do Lopes, (estarei enganado no nome? Não será outro P?) de megafone em punho, braçadeira a comandar as hostes, imagine-se. O sorriso de Bernardes a morrer no trauma. A tornar lentamente estúpido o apreço. Revolução do car….! O sacana do Lopes (ou será P?) naquilo, a devorar palavras de ordem. Boininha à Ché, barbicha rala e um comprido blusão de caqui esverdeado. E aquele carpinteiro naval da Lisnave, comunista emiele, todo feito com o Lopes, o aliado Lopes (não será o outro P?), que se calhar se passou para o poder popular (com o seu boné? Será?) por não o terem indemnizado enquanto accionista da Banca. Ofereceria ele para quartel, à Isabel do Carmo, a sua luxuosa vivenda no Guincho? Aí, ó grande Lopes! É assim mesmo! Em vez de seguir para a Trafaria sob a batuta do Lopes, dirigiu-se para a casa do tio-padrinho a fim de se avistar com a famelga, meditando, pelo caminho, no estranho fenómeno que põe fascistas dentro da revolução e antifascistas fora dela». In Júlio Conrado, Era a Revolução, Editorial Notícias, Lisboa, 1997, ISBN 972-46-0859-X.

Cortesia de Editorial Notícias/JDACT