sexta-feira, 17 de maio de 2013

Da Decifração em Textos Medievais. Apertio Libri. Arnaldo Espírito Santo. «Perspectivada em várias vertentes, a questão da decifração em textos medievais, tanto no regresso aos testemunhos, como através de mensagens enigmáticas sinalizando o fechamento de sentidos…»

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In Memoriam de Maria Isabel Raposo

Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual
Paradigma
«(…) É, pois, neste enquadramento que se dá a apertio libri. Todo o formulário que a acompanha pode ser interpretado como um adventus imperial, ou seja, como um cerimonial de entronização no poder, entronização do cordeiro e do seu povo que reinará sobre a terra. Assim sendo, o livro surge aqui como símbolo do poder, já que ser digno de receber o livro e de quebrar os seus selos é o mesmo que ser digno de receber a virtude, a divindade, a sabedoria, a fortaleru, ãhonra, a-glória, e a bênção. Se a implantação da Igreja em estado incoativo sobre as ruínas do mundo pagão finalmente destruído, ou se a implantação da Igreja em estado de perfeição consumado, ou, ainda, se o fim dos tempos e a implantação do Reino de Cristo por toda a eternidade. Estas três interpretações tiveram em todos os lances da história os seus defensores e os seus adeptos.
O que mais aqui importa referir é que antes de ser lida a sua mensagem, o que nunca virá a acontecer, só com o simples desenrolar da cerimónia da sua abertura, à medida que vão sendo quebrados os selos, executa-se, passo a passo, selo a selo, a destruição do universo visível, que pode simplesmente simbolizar o antigo estado de coisas, a antiga civilização, a antiga moral, os antigos deuses, as antigas formas de poder. A mensagem do livro, que nunca chega a ser lida, simbolizará a implantação de uma nova cultura, entronizada pelo cristianismo. Parece ser esse o significado da presença dos quatro evangelistas simbolizados nos quatro animais, das sete igrejas representadas nos sete anjos, dos patriarcas e dos apóstolos figurados nos vinte e quatro anciãos. São estes os fundamentos em que vai assentar a nova organização da humanidade.
Enfim, aqui temos os elementos de uma majestosa codificação simbólica do advento do livro como fonte inspiradora de uma nova ordem das coisas e revelação de um sentido para o universo que tende para o seu criador. A abertura do livro contém em si estas duas faces de um mesmo paradigma: por um lado o judaísmo, o cristianismo, o maometismo, a lei moisaica, a cristã, a muçulmana, constituem-se como religiões do livro; por outro lado, o livro nunca deixará de ser um referente sacral, que tem como paradigma o grande livro da criação onde estão inscritos os planos divinos sobre a humanidade e o universo. Mudar de livro é mudar de religião. Só o cristianismo se manteve fiel ao livro do judaísmo, o Antigo Testamento, porque sempre se assumiu como continuidade da antiga na nova Aliança.
Tal continuidade revela-se na simbologia do livro, como no paralelismo de instruções e significado entre determinadas expressões dos capítulos 5 e 10 do Apocalipse e os capítulos 2 e 3 do Profeta Ezequiel. O livro do Apocalipse, escrito por dentro e por fora, encontra-se já em Ezequiel. Há no entanto diferenças de pormenor verdadeiramente significativas entre as duas aberturas do livro. Em Ezequiel não há selos, ou seja, o conteúdo não está selado e, por isso, ao contrário do que acontece no Apocalipse, o conteúdo é declarado como sendo constituído por lamentações, gemidos e prantos, conteúdo esse que o Profeta é convidado a pregar aos filhos de Israel. Mas nada que se pareça com a cerimónia da entronização do cordeiro que vimos no Apocalipse. Além disso, o Profeta é convidado a comer o livro que a mão de alguém lhe estende. Esse gesto significa que Ezequiel recebeu o conteúdo e a investidura da sua missão, tal como Isaías e Jeremias, que a receberam quando mão invisível lhes tocou nos lábios.
Ezequiel comeu o livro, uma expressão simbólica da assimilação do seu conteúdo, que encontramos em português na metáfora: devorar um livro. E depois de o comer sentiu que na boca era doce como o mel. Recordo de passagem a expressão do salmista: Como são doces as tuas palavras na minha boca, mais doces que o mel. O que significa que o conteúdo do livro devorado por Ezequiel era a palavra de Deus. No Apocalipse há um passo idêntico a este, no qual o Evangelista é convidado a comer o livro, que diz o seguinte:
  • Depois vi um outro anjo forte que descia do céu, vestido de uma nuvem, e com o arco-íris sobre a sua cabeça; o seu rosto era como o sol, e os seus pés como colunas de fogo; tinha na mão um livrinho aberto, e pôs o pé direito sobre o mar, e o esquerdo sobre a terra, e gritou em alta voz…, etc.
E logo a seguir:
  • E ouvi a voz do céu que novamente me falava e que dizia: vai e toma o livro aberto da mão do anjo, que está de pé sobre o mar e sobre a terra. Fui ter com o anjo, dizendo-lhe que me desse o livro. Ele respondeu-me: toma-o e devora-o; ele fará amargar o teu estômago, mas na boca será doce como o mel. Tomei o livro da mão do anjo, devorei-o, e na minha boca era doce como mel; mas depois que o devorei, o meu estômago ficou amargo. E disse-me: é necessário que ainda profetizes a muitas nações, povos, línguas e reis.
In Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT