quinta-feira, 16 de maio de 2013

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «A retirada para o eremus que uma bula pontifícia de Urbano II consagra algum tempo depois, em enquadramento que poderia parecer depreciativo, pois se trata de obrigar ao regresso de Roberto, a quem os monges de Molesme inicialmente haviam dado anuência…»

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Cister. Os Documentos Primitivos ou a identidade de um Projecto Monástico
Introdução
«Quando, em 1098, alguns monges da abadia de Molesme, mosteiro situado nas fronteiras da Champanha e da Borgonha, fundado por um grupo de eremitas em 1075, tomam a iniciativa de deixar o seu mosteiro e partir para uma outra fundação não o fazem de ânimo leve. A própria data escolhida para tal efeito é plena de significado. Estava-se a 21 de Março, festa de S. Bento, que nesse ano coincidia com Domingo de Ramos. Celebrar a Páscoa longe do mosteiro a que se haviam acostumado e no qual haviam feito profissão de fidelidade à Regra de S. Bento e jurado estabilidade exigia não apenas uma ruptura, mas decisões espirituais profundas. A frente do grupo estava Roberto, abade de Molesme, monge de diversas experiências monásticas e habituado a acudir a quem solicitava o seu apoio espiritual. A decisão fora tomada de acordo com o legado pontifício, Hugo, arcebispo de Lião que, para o efeito, indagou dos reformadores as suas intenções. Tratava-se de optar por uma vida mais perfeita e sem molestar aqueles que na própria abadia de Molesme pretendiam continuar o género de vida a que se haviam acomodado.
Não constituía isso um acto impensado nem ele era invulgar nos tempos que corriam. A própria abadia de Molesme surgira de uma procura de renovação e o espírito do abade Roberto não podia deixar de inquietar-se com a quebra de fervor monástico. A saída, porém, exigia motivações e apoios, pois, não havia muito tempo, os monges que se tinham retirado para outro lugar, Vivicus, tinham sido obrigados a regressar à origem pelo bispo de Langres, devido a reclamação dos monges molismenses. No entanto, dois nomes desses monges são reconhecíveis, pois se trata de Alberico e de Estêvão Harding, e somos levados a pensar que os motivos eram bem profundos e sentidos.
As razões que esse novo grupo, agora de seis monges, Roberto, Alberico, Eudes, João, Estêvão, Letaldo e Pedro, apresenta ao arcebispo de Lião pareciam motivo mais que legítimo à luz da canonística do tempo. O argumento que passa para os documentos era o de que em Molesme se estava a viver a Regra de uma forma tíbia e negligente, tepide et negligenter, e eles pretendiam praticar essa mesma Regra de modo estrito. Se a interpretação de vida negligente não parecia bastar, pelo que a reinterpretação dos cronistas posteriores não hesita em dramatizar as tensões existentes, transformando-as em discussões que servem uma narrativa, o propositum era plenamente louvável e estava de acordo com tendências espirituais do tempo, em que a reforma era tanto mais desejada quanto nela pesavam factores de espiritualização contra a feudalização da vida monástica e de reacção contra a intrusão dos poderes civis dentro da Igreja e a sobreposição dos poderes temporais sobre os espirituais, nomeadamente na questão das investiduras reclamadas pelo imperador do Sacro Império.

NOTA: Veja-se o texto de Orderico Vital e o de Guilherme de Malmesbury; não se deixe de ter em conta que a Molesme acodem espíritos de grande exigência como Bruno, fundador da Cartuxa, e Estêvão Harding que conhece a prática beneditina de outras abadias, mas procura integrar a vida de ermita a que depois se dedicou. O próprio bispo de Troyes, Hugo II de Dampierre, quando um dia passa por Molesme tem de contentar-se com pão seco. Um dos grandes benfeitores do mosteiro foi Eucles I, duque da Borgonha, que depois apoiará também Cister. Antes de 1080, os hábitos de vida monástica de Molesme nada tinham a ver com as facilidades de Cluny. É possível que com os benefícios recebidos tivesse havido uma transferência insensível para os hábitos desta observância, com a aceitação de rendas, priorados, etc., prática que Roberto não terá conseguido evitar, pelo que se refugiou por algum tempo junto dos eremitas de Auch, ainda que a pretexto de os auxiliar na orientação monástica.

A retirada para o eremus que uma bula pontifícia de Urbano II consagra algum tempo depois, em enquadramento que poderia parecer depreciativo, pois se trata de obrigar ao regresso de Roberto, a quem os monges de Molesme inicialmente haviam dado anuência, mas a quem agora reclamam em apelo para o papa, argumentando com os prejuízos que tinham advindo para a comunidade monástica, tal retirada era, a um tempo, simbólica e real». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT