sexta-feira, 24 de maio de 2013

Cátedra Eduardo Lourenço. Universidade de Bolonha. Margarida Calafate Ribeiro. Uma Outra História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa. «Mas Camões poderia ser o patrono dessa cultura e dessa língua em “pedaços pelo mundo repartida”, cujo arranque nos é narrado na epopeia nacional, que simultaneamente nos consagrou…»

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«(…) Num estilo que prefere as oposições conceptuais e os semi-paradoxos ao oxímoro martiniano e elege como personagem não o Portugal de Oliveira Martins, mas um nós comprometedor e comprometido, Eduardo Lourenço construiu o seu discurso sob a égide do pensamento de Fernando Pessoa e de algum pragmatismo de Mouzinho da Silveira, escolhidos para epígrafe de Labirinto da Saudade, e conforme diz no Breve esclarecimento de introdução ao mesmo livro, estimulado, por um lado, pela mudança histórica dos últimos quatro anos e, por outro, pela leitura recente de livros de índole diversa, mas todos eles exprimindo uma vontade de renovação da imagerie habitual da realidade portuguesa, Eduardo Lourenço empreende uma reflexão crítica, marcada por uma inteligentíssima ironia, sobre os diversos discursos identitários de Portugal, sobre os seus mitos culturais e sobre as imagens por eles criadas no imaginário nacional. Não nos poupando a pele imperial, despida sem demoras, nem as tentações de agora tratar o império da ficção como o substituto da realidade historicamente perdida, nem muito menos as facilidades iconoclastas de tudo substituir ou escamotear como um exercício de vómito dessa pobre pátria salazarista colonizadora por excelência, que durante décadas nos habitou, Eduardo Lourenço adverte-nos que nalguma realidade e muito na ficção nós fizemos África e África, na realidade e nalguma ficção, se terá feito também portuguesa. É nessa inter-realidade e nessa inter-ficção, com o máximo de realismo, que nos podemos encontrar. Neste difícil e ambíguo compromisso entre um passado que se quer expurgar das ficções e abusivas interpretações que o Estado Novo dele tinha feito e um futuro de vocação europeia que se quer construir em resposta às novas coordenadas políticas, geográficas e culturais, sem deixar, de uma maneira ou de outra, de integrar um passado mítico e histórico, Eduardo Lourenço reinventa-nos, por mediação pessoana, em recorrentes e poderosas metáforas de viagem, de que a imagem de Portugal como navio-nação é a mais expressiva, ao rever-nos no mais carismático símbolo nacional em que nos habituámos a ganhar e perder a nação. Esta substituição, não substitutiva, do nosso bilhete de identidade, que o discurso de Eduardo Lourenço nos oferece, veiculada por uma voz mais pessimista que optimista, vinha ao encontro das nossas mitologias poéticas e reflectia as nossas mitologias orgânicas de análise da nação. Apontava-nos assim o ensaísta para uma imagem de um Portugal europeu, mais diáspora que fronteira, que ia ao encontro, não só da fragmentação e dispersão de Portugal nas suas aventuras imperiais e nas suas Guerras Coloniais, mas também da errância portuguesa das emigrações e dos exílios, que tinham levado Portugal a uma dispersão, não só para outras terras, mas também para outras línguas e culturas e que, no pós-25 de Abril, procuram o seu centro num Portugal de identidade mais ampla e difusa, baseada na língua e na cultura que a nossa viagem espalhara, e de que hoje resulta uma partilha cultural que se define como mundo de língua portuguesa.
Camões, o poeta da língua portuguesa, mas também do império terreno que resulta dos Descobrimentos exaltados em Os Lusíadas, e autor tão perturbadoramente usado e abusado pelo regime de Salazar como símbolo da dimensão imperial portuguesa, não poderia ser no imediato o discurso poético do final desta aventura imperial excessiva, que acabava com cravos nos canos das espingardas depois de treze anos de guerra lá longe em África, de onde iam chegando homens desfeitos, pedaços, cartas, poemas, fragmentos de uma nação que ia deixando de ser, o que não nos permitia ver no 25 de Abril a revolução pacífica que todos apregoavam. Ele estava manchado de sangue por treze anos de guerra em África. Por isso, o lado da conquista do poema camoniano, que inquieta o leitor contemporâneo e que tão exacerbado fora pelo discurso salazarista, perturbava um país recém chegado da Guerra Colonial e ainda agoniado com toda a escola e mitologia salazaristas que nos tinham feito, durante décadas, recitar os versos guerreiros do poema, marcando-nos a alma para sempre com imagens que, no imediato da revolução, se pretendiam esquecer e diluir na imagem difusa e encantada da jovem democracia. Mas Camões poderia ser o patrono dessa cultura e dessa língua em pedaços pelo mundo repartida, cujo arranque nos é narrado na epopeia nacional, que simultaneamente nos consagrou como vanguarda da Europa de então, onde agora nos queríamos recolocar, e nos deseuropeizou, ao nos lançar para sempre no sonho imperial, que também não queríamos abandonar. Na hora pós-colonial, o resultado da aventura de dispersão e viagem narrada por Camões seria também e mais adequadamente interpretada à luz do outro patrono da língua portuguesa, Fernando Pessoa, não tanto na frase inicialmente pronunciada por Bernardo Soares / Pessoa em reservada intimidade, minha pátria é a língua portuguesa, mas nos contornos que a intensa citação da frase lhe acrescentou, ao ser glosada por inúmeros poetas e escritores que, ora tinham travado com as teses de Pessoa um diálogo plural numa oposição ao imaginário imperial salazarista, ora, já num contexto pós-colonial, tinham encontrado na expressão a formulação do sentimento de pertença a uma cultura universal de língua portuguesa». In Margarida Calafate Ribeiro, Uma Outra História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha, Instituto Camões, Dezembro de 2007.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT