domingo, 19 de maio de 2013

A Vida Crucis do Corpo. Contos. Clarice Lispector. «… estava morrendo de cansaço, porque estou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manhã. Sempre fiz a última cópia dos meus livros anteriores porque “cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendo neles, enfim”»

Cortesia de wikipedia

Nota Prévia
«Todo texto com tradição, tomada a palavra no sentido que a Crítica Textual lhe empresta, tende a apresentar, nas reproduções que dele são feitas, um maior ou menor número de alterações que vão, desde os erros cometidos por distração de digitadores até as correções bem intencionadas de revisores ou copidesques. Por isso, é necessário que se proceda ao estabelecimento desse texto, procurando, no confronto com as edições publicadas em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade. Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos, mas não se preocupava em guardar manuscritos e originais, como se pode verificar no arquivo que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, cujo inventário foi organizado por Eliane Vasconcellos, e publicado em 1994. De toda sua obra ficcional, só restou um original datilografado: o de Água viva, a propósito do qual fala em carta a Olga Borelli, mostrando como trabalhava exaustivamente o texto:
  • … Não pude te esperar: estava morrendo de cansaço, porque estou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manhã. Infelizmente eu é que tenho que fazer a cópia de Atrás do Pensamento, sempre fiz a última cópia dos meus livros anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendo neles, enfim.
No entanto, depois de encaminhar o texto à editora, Clarice não se interessava mais por ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso Romano de Sant'Anna e Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de 1976:
  • Affonso - Você tem os seus textos escritos na cabeça. E uma vez você me disse uma coisa impressionante: você nunca relê um texto seu. 
  • Clarice - Não. Enjoo. Quando é publicado, é como livro morto. Não quero mais saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. Aí não leio, ora! 
Olga Borelli, grande amiga e companheira de Clarice Lispector, com quem conversamos recentemente, nos assegurou que, de facto, Clarice não revia seus textos depois que encaminhava os originais à editora. Assim, não é possível trabalhar com textos de Clarice Lispector, ignorando-se o facto de que não os revia e, portanto, não fazia mudanças de uma edição para outra. A via crucis do corpo teve somente uma edição em vida da autora: a de 1974. Nas edições que se seguiram, incorporaram-se incorreções que procuramos corrigir nesta edição, cuidadosamente confrontada com a primeira. In Marlene Gomes Mendes

Miss Algrave
Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela, que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade. Seu dia, sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado de noite. Mas na sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era. Solteira, é claro, virgem, é claro. Morava sozinha numa cobertura em Soho. Nesse dia tinha feito suas compras de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado. Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente. Foi depois do almoço ao trabalho: era dactilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a felizmente com respeito, chamando-a de Miss Algrave. Seu primeiro nome era Ruth. E descendia de irlandeses. Era ruiva, usava os cabelos enrolados na nuca em coque severo. Tinha muitas sardas e pele tão clara e fina que parecia uma seda branca. Os cílios também eram ruivos. Era uma mulher bonita. Orgulhava-se muito de seu físico: cheia de corpo e alta. Mas nunca ninguém havia tocado nos seus seios.
Costumava jantar num restaurante barato em Soho mesmo. Comia macarrão com molho de tomate. E nunca entrara num pub: nauseava-a o cheiro de álcool, quando passava por um. Sentia-se ofendida pela humanidade. Cultivava gerânios vermelhos que eram uma glória na Primavera. Seu pai fora pastor protestante e a mãe ainda morava em Dublin com o filho casado. Seu irmão era casado com uma verdadeira cadela chamada Tootzi. De vez em quando Miss Algrave escrevia uma carta de protesto para o Time. E eles publicavam. Via com muito gosto o seu nome: sincerely Ruth Algrave.
Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã. No dia em que aconteceu era sábado e não tinha portanto trabalho. Acordou muito cedo e tomou chá de jasmim. Depois rezou. Depois saiu para tomar ar. Perto do Savoy Hotel quase foi atropelada. Se isso acontecesse e ela morresse teria sido horrível porque nada lhe aconteceria de noite. Foi ao ensaio do canto coral. Tinha voz maviosa. Sim, era uma pessoa privilegiada. Depois foi almoçar e permitiu-se comer camarão: estava tão bom que até parecia pecado. Então dirigiu-se ao Hyde Park e sentou-se na grama. Levara uma Bíblia para ler. Mas, que Deus a perdoasse, o sol estava tão guerrilheiro, tão bom, tão quente, que não leu nada, ficou só sentada no chão sem coragem de se deitar. Procurou não olhar os casais que se beijavam e se acariciavam sem a menor vergonha.
Depois foi para casa, regou as begônias e tomou banho. Então visitou Mrs. Cabot que tinha noventa e sete anos. Levou-lhe um pedaço de bolo com passas e tomaram chá. Miss Algrave sentia-se muito feliz, embora… Bem, embora. Às sete horas voltou para casa. Nada tinha a fazer. Então tricotou uma suéter para o Inverno. De cor esplendorosa: amarela como o sol.  Antes de dormir tomou mais chá de jasmim com biscoitos, escovou os dentes, mudou de roupa e meteu-se na cama. Suas cortinas de gaze ela mesma fizera e pendurara. Era Maio. As cortinas se balançavam à brisa dessa noite tão singular. Singular por quê? Não sabia». In Clarice Lispector, A Via Crucis do Corpo, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN 85-325-0950-9.

Cortesia de Rocco/JDACT