segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Mesa dos Reis de Portugal. Casos e Ofícios da Mesa. Séculos XIII a XVI. Rita Costa Gomes. «Que ofícios encontramos mencionados na documentação mais antiga do reino de Portugal que estivessem relacionados com a administração de alimentos e com o sustento da corte?»

Sancho II. Diálogos de Varia História. Pedro Mariz 
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«(…) Esta separação parece que seria pouco relevante para as realezas da Alta Idade Média, nomeadamente para a dos francos na época meroúngia, ou para a dos visigodos hispânicos. De acordo com os textos mais antigos que conhecemos descrevendo a corte imperial carolíngia, por exemplo, a designação convivas do rei (convivae regis) englobava todos quantos se juntavam ao monarca, seja porque com ele viviam, seja porque tinham sido convocados para a corte numa dada ocasião. Assim sendo, parece que esta designação na Alta Idade Média se usava também no caso de uma participação meramente temporária na corte, e não apenas para os membros regulares do séquito ou para aqueles que nele detinham ofícios específicos. O regime dos ofícios carolíngio incluía alguns funcionários responsáveis pelos recursos usados no sustento dos convivas do rei, entre os quais observamos uma divisão entre a administração do vinho e a dos restantes alimentos, e também a autonomia do ofício ligado aos cavalos da comitiva regia. O mesmo sucedia no caso da realeza visigótica no século VII, pois além do comes cubiculariorum, ligado ao cubiculum, ou câmara do rei, as fontes mencionam um comes scanciarum, ou escanção, e também um comes stabuli, encarregado dos cavalos e do seu sustento. A breve menção ao regime visigótico ou carolíngio serve aqui apenas como útil contraste com o quadro problemático das cortes mais tardias, ao mesmo tempo chamando a atenção para a existência de cortes associadas à reprodução e configuração da realeza no período da Alta Idade Média. Está hoje posta de lado, com efeito, a interpretação outrora corrente entre os historiadores de que a corte régia apenas emerge com o Renascimento dos séculos XV e XVI.
Uma procura sistemática de continuidades e influências na longa duração seria, no entanto, um caminho de parca utilidade para o estudo do caso português, no qual a corte régia apenas se configura a partir do século XII. As transformações da instituição monárquica sobrevindas nos séculos centrais da Idade Média são, em contrapartida, mais relevantes para a nossa análise, e elas aproximam o reino português dos restantes reinos cristãos peninsulares, em particular o de Leão e Castela, e o de Aragão. Deixando de lado, propositadamente, uma obsessiva procura das origens para a realeza portuguesa, retomemos algumas das conclusões que a seu tempo propuseram Herculano, Gama Barros, Paulo Mereia ou Rui Azevedo, relativamente ao quadro dos oficiais que acompanhavam os primeiros monarcas de Portugal, tal como ele pode ser reconstruído a partir dos documentos régios que sobreviveram.
Segundo concluíram estes autores, certamente existiu já uma corte condal, embora modesta. Mas foi a dignidade real reivindicada por Afonso Henriques que se traduziu por uma organização palatina, que emulava o vizinho leonês e correspondeu a uma contínua expansão das relações com outras cortes ibéricas e extrapeninsulares, nomeadamente através dos casamentos do próprio Afonso Henriques com D. Mafalda de Mouriana, e de Sancho I com D. Dulce de Aragão. A corte dos primeiros reis de Portugal, de facto, não demonstra grandes diferenças no quadro dos usos correntes entre os monarcas ibéricos do século XII. Que ofícios encontramos mencionados na documentação mais antiga do reino de Portugal que estivessem relacionados com a administração de alimentos e com o sustento da corte? A enumeração não é difícil de fazer (a síntese clássica encontra-se em Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos XII a XV, 1946), embora a interpretação de uma orgânica de funções e da hierarquia de ofícios seja controversa, em grande medida pela escassez de notícias e pela circulação das mesmas personagens no desempenho de vários desses ofícios durante os governos de Afonso Henriques e Sancho I. Encontrando-se os ofícios sob a autoridade de um mordomo, que detinha a posição hierarquicamente dominante do séquito real, verificava-se a separação usual entre a administração da comida e da bebida, que corresponderia às funções respectivas do dapifer, comida, e de personagens como o scancio ou pincerna, bebida, vocábulo este que teria talvez sabor arcaizante no século XII. A menção de um spensator ciborie regis (servidor que administrava o cereal do reis) em documentos da década de 1150, juntamente com a existência de vários oficiais denomina dos dapifer, nomeadamente um dapifer regis a par de um dapifer curie servindo na mesma corte, levou-me a postular a hipótese, em trabalho publicado pela primeira vez em 1995, de que já se verificasse no século XII em Portugal a separação que veio depois a ser mencionada expressamente nas leis da centúria seguinte:
  • de um lado, estaria o serviço da mesa do rei;
  • de outro, a administração dos alimentos da restante corte.
Esta separação, tem grande importância no estudo da comensalidade cortesã. Uma das primeiras referências a este mecanismo de separação diz respeito à corte dos primeiros monarcas angevinos em Inglaterra, onde uma descrição sistemática dos ofícios, de cerca de 1136, enumera um cozinheiro para o rei que exerce o seu ofício em separado dos cozinheiros da grande cozinha da corte. A existência de múltiplas personagens servindo como dapifer na corte portuguesa pode estar relacionada com este traço estrutural observado em outros contextos coevos». In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT