domingo, 26 de maio de 2013

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «Enquanto na versão maior a rainha se chama ‘Aldora’ e a jovem e bela moura, causa de tantas infelicidades, é chamada ‘Ártiga’, que significa alusivamente “comprida de todollos bens”»

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Os Contos dos Cronistas
«(…) Por outro lado, temos a perfídia da mulher traidora. Mas a que é devida esta absoluta ausência de tons corteses? Trata-se, como é sabido, da primitiva forma do conto, ainda arcaica e de estrutura embrionária, ou não é mais do que uma refundição do mesmo modelo que serviu ao conde Pedro, realizado num ambiente popular e, por conseguinte, destinado a um público a quem o espírito cortês da fonte não interessava, e era estranho, a um público que se diverte só com os insucessos humilhantes do antagonista? Um indício de relevo, que me faz pender para esta última hipótese, é dado pelo nome das personagens. Enquanto na versão maior a rainha se chama Aldora e a jovem e bela moura, causa de tantas infelicidades, é chamada Ártiga, que como vimos no modelo germânico, significa alusivamente comprida de todollos bens, na redacção sucinta, onde a personagem da moura é eliminada, a dama de companhia da rainha que primeiro encontra Ramiro em Gaia chamava-se Ortiga, nome imediatamente mais alusivo e que é uma evidente banalização de Ártiga, cujo sentido o público menos requintado não estava, tanto quanto parece, em estado de captar.
Que a circunstância não é casual, prova-se pelo facto de que, além de ter um nome derivado do da moura, a donzela desempenhará também as suas funções no fim do conto, adquirindo ainda o nome duma outra personagem feminina, o de Aldora: Este Ramiro… baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvou-lhe toda sa corte muito, e pos-lhe nome D. Aldara. Assim se vê claramente que, eliminada a personagem essencial de Ártiga, o autor da nova versão não conseguiu apagar-lhe completamente os traços, empreendendo uma redução da fábula ao essencial tipicamente popular. Uma vez que a redacção sucinta parece cronologicamente anterior à do Nobiliário de Pedro, julgo que a hipótese de uma fonte comum a ambas as versões seja a mais atendível: enquanto o conde Pedro utilizou o modelo de forma adequada, o primeiro refundidor, totalmente alheio a quaisquer veleidades literárias, reduziu-o simplesmente, adaptando-o às exigências do seu público.
Mas será possível formular alguma hipótese razoável sobre a estrutura do provável modelo comum às duas redacções? Em 1880 Gaston Paris, que pela primeira vez publicou, na revista Romania, os dois textos em edição sinóptica, levantou a hipótese de uma fonte leonesa, já que a história é situada em Leão. Nenhuma prova nos autoriza, porém, a confirmar esta ideia. Por mim, sou mais levado a crer num modelo francês, tanto mais que a intriga essencial do Salmon und Markolf se fundiu naquela época em França com os episódios relativos ao lendário espírito de cortesia de Saladino e ao seu extraordinário sucesso com as mulheres cristãs, retomados no Menestrel de Reims, no romance de Jean d’Avesnes, etc., não sendo difícil entrever, por trás da nobre figura de Alboaçer Albozadam, o mítico Salahad-din.
Seja como for, a Lenda de Gaia de Pedro, independentemente de todas as conjecturas sobre as possíveis solicitações literárias que contribuíram para a sua realização, é na verdade uma pequena obra-prima. Para encontrar uma análoga imediatidade mimética e uma tal capacidade expressiva numa obra histórica, dever-se-á esperar pelo grande Fernão Lopes. Este último, porém, sendo embora um habilíssimo narrador, não condescende com representações fantásticas. Mesmo quando cria verdadeiros romances, como o que se refere à rainha D. Leonor, lasciva e cruel, cinge-se constantemente aos dados históricos. Uma análise da sua obra seria, portanto, estranha ao assunto.

Literatura de Corte: Cantigas de Santa Maria e Cantigas de Maldizer e D’escarnho
Examinados os contos dos cronistas é agora o momento de passar em revista a original literatura em língua galego-portuguesa produzida nas grandes cortes ibéricas. É uma posição central aquela que assume, neste âmbito, a figura de Afonso X, que com o seu repertório devoto, cujo relevo narrativo foi várias vezes sublinhado, e o profano, fortemente satírico, representa significativamente as duas almas da Ibéria medieval». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT