sábado, 20 de abril de 2013

Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Grande Prémio APE 1995. Mário de Carvalho. «Mas que deu àquela gente bisonha, mesquinha e bruta, para deixar, ululante, os seus desertos, a companha dos escorpiões e serpentes, atravessar o mar, nas suas naves tosquíssimas, desprovidas de olhos e de altares divinos…»

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«No mármore verde da mesa redonda a que me sento, uma lasca quadrangular, estilhada, obscena, macula o perfil sorridente do rosto de Baco, carregado de uvas, meticulosamente lavrado. Não se desvaneceram de entre os sulcos do buril, por mais tratos de esfrega e lavagem, as cinzas negras dos fogos que aqui um dia estalaram. Marcas da fúria dos bárbaros. Teria sido esta mesa o altar escolhido para os ritos primitivos deles, suporte das chamas, escorredouro das vísceras? Ou nem isso, apenas desamparado objecto de raiva, ferido porque humano, sinal de uma perfeição que a boçalidade abomina? Vi chegar um dia esta mesa, numa recova de carros, embalada em tojos e palhas, era o meu pai ainda novo, eu catraio de brincar ao arco. Ele tinha orgulho naquela pedra verde, ratada, única, vinda de muito longe. Recordo o esforço de um grupo de escravos fazendo rolar o pesado mármore redondo, lanço após lanço, até este caramanchão que, já na altura, vicejava, folheado de videiras.
E a satisfação do meu pai, orgulhoso, a acariciar com as mãos as linhas do buril, enunciando a genealogia, feitos e atributos de Baco, para eu aprender. Passados os anos e os angustiosos trabalhos que serão relatados, vi de novo levantar aquela pedra a poder de braços, vi-a rolar por lanços esforçados e ser teimosamente recolocada na sua base, com a ajuda de cordas e alçapremas. Não era já o mesmo mármore: havia sido profanado, fendido, abrasado. Assim, como está, permanecesse doravante, pelos séculos dos séculos, livre de maiores agravos e aleives. Mas, de cada vez que a minha mão lhe corre sobre a superfície danificada e sinto a rugosidade dos golpes, o oleoso das cinzas, chega-me um rebate de ameaça, indefinido, mas brutal.
A grande pedra, rolando, lembra-me a daquele rei de Corinto, fugaz aprisionador da morte, eterno prisioneiro do destino. Quem pode asseverar que este mármore verde, algum dia derrubado, não voltará mais a sê-lo e se deixará apenas esbater naturalmente, lentamente, mansamente, pelo desgaste compassado das erosões dos tempos? Quem me garante que estas tardes campestres, tão paradas e tranquilas, não serão mais uma vez sobressaltadas pelo atroo de brados malignos? O que passou, passou? Deixem-me cultivar esta despreocupação, a ilusão de que o mundo seguirá para sempre imperturbado e imperturbável, após um desassossego passageiro na sua ordem. Sou um senhor da terra, sou um romano, leio, cultivo-me, marco os tempos com o meu porte, os meus gestos, os meus ditos, as minhas maneiras, a minha fleuma, o meu trajo togado. Dignidade. Gravidade. Romanidade. Humanidade. Convulsos temores e angústias resolvam-nos as legiões, e de rijo, que é o que lhes compete. A mim, agora, os livros...
Mas que deu àquela gente bisonha, mesquinha e bruta, para deixar, ululante, os seus desertos, a companha dos escorpiões e serpentes, atravessar o mar, nas suas naves tosquíssimas, desprovidas de olhos e de altares divinos, e vir desabar sobre a Lusitânia em correrias de sangue, talando fazendas, casas e gentes? Que ímpeto foi aquele que algum deus obscuro e ressaibado lhes comunicou e que não perdoava madeira nem pedra, culpado nem inocente, livre nem escravo, e que trazia o único escopo de destruir e volver em deserto as cidades e os agros talentosamente erguidos por gerações que falam latim, cultuam os deuses e praticam o direito? Um exército conquistador pilha por turnos, poupa os vencidos, reconstrói as cidades, cobra o tributo, restabelece a ordem.
Faz seu o subjugado, e como seu o preserva. Desfeito o turbilhão, zelam as patrulhas pela aplicação de uma norma. Mas, quando passa uma horda, deixa na terra a marca da pura irracionalidade, o restabelecimento do caos original, que faz do engenho ameaça, do labor perversão, da beleza monturo. Assim as colunas quebradas, as termas conspurcadas, os cadáveres esventrados ao claror dos incêndios. Não corre entre eles um único homem capaz de bradar: poupem, que o que aqui está já nos pertence! A salteada demoníaca tudo faz raso, até que a detenham os primeiros ferros duma legião.
Nesta villa trucidaram animais e escravos que ficaram a inchar pelos campos; quebraram as colunas, arrancaram as telhas, desfeitearam os lares; rasparam as velhas pinturas dos interiores; serviram-se de móveis e estofos como lenha; as mesmas mós, de duríssima rocha, britaram. Desenraizaram as árvores, devastaram as vinhas, pisaram as flores. Todos os livros foram esfarrapados ou queimados. Até nesta inofensiva mesa de mármore apuseram as suas marcas bestiais. Porquê? Em nome de quê? Se tal eu soubesse, seria o mais sábio dos homens e poderia aconselhá-los com proveito. O porquê daquela ânsia dementada de destruir deve ser, de todos, o mistério mais bem guardado. Não quis a divindade revelar-mo, apenas que lhe sofresse as consequências». In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.

Cortesia de Caminho/JDACT