terça-feira, 30 de abril de 2013

Memorial do Convento. José Saramago. «… e esta que é filha, e amada como se viu pelo modo como a olhava a mãe, não teve mais dizer senão, Ali vai, e depois voltou-se para um homem a quem nunca vira e perguntou, Que nome é o seu, como se contasse mais sabê-lo que o tormento dos açoites»

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«E tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás-de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando cascas de melancia e imundícies, ai como estão enganados, só eu sei que todos poderiam ser santos, assim o quisessem, e não posso gritá-lo, enfim o peito me deu sinal, gemeu profundamente o coração, vou ver Blimunda, vou vê-la, ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.
Já passou Sebastiana Maria de Jesus, passaram todos os outros, deu volta inteira a procissão, foram açoitados os que esse castigo haviam tido por sentença, queimadas as duas mulheres, uma primeiramente garrotada por ter declarado que queria morrer na fé cristã, outra assada viva por perseverança contumaz até, na hora de morrer, diante das fogueiras armou-se um baile, dançam os homens e as mulheres, el-rei retirou-se, viu, comeu e andou, com ele os infantes, recolheu-se ao paço no seu coche puxado a seis cavalos, guardado pela sua guarda, a tarde desce depressa, mas o calor sufoca ainda, sol de garrote, sobre o Rossio caem as grandes sombras do convento do Carmo, as mulheres mortas são descidas sobre os tições para se acabarem de consumir, e quando já for noite serão as cinzas espalhadas, nem o Juízo Final as saberá juntar, e as pessoas voltarão às suas casas, refeitas na fé, levando agarrada à sola dos sapatos alguma fuligem, pegajosa poeira de carnes negras, sangue acaso ainda viscoso se nas brasas não se evaporou. Domingo é o dia do Senhor, verdade trivial, porque dele são todos os dias, e a nós nos vêm gastando os dias se em nome do mesmo Senhor não nos gastaram mais depressa as labaredas, por duplicada violência, que é, a de me queimarem quando por minha razão e vontade recusei ao dito Senhor ossos e carne, e o espírito que me sustenta o corpo, filho de mim e de mim, cópula directa de mim comigo mesmo, infuso do mundo sobre o rosto escondido, igual ao mostrado e por isso ignorado.
No entanto, é preciso morrer.
Frias hão-de ter parecido, a quem perto estivesse, as palavras ditas por Blimunda, Ali vai minha mãe, nenhum suspiro, lágrima nenhuma, nem sequer o rosto compadecido, que ainda assim não faltam estes no meio do povo apesar de tanto ódio, de tanto insulto e escárnio, e esta que é filha, e amada como se viu pelo modo como a olhava a mãe, não teve mais dizer senão, Ali vai, e depois voltou-se para um homem a quem nunca vira e perguntou, Que nome é o seu, como se contasse mais sabê-lo que o tormento dos açoites depois do tormento do cárcere e dos tratos, e que a certa certeza de ir Sebastiana Maria de Jesus, nem o nome a salvou, degredada para Angola e lá ficar, quem sabe se consolada espiritual e corporalmente pelo padre António Teixeira Sousa, que muita prática leva de cá, e ainda bem, para não ser tão infeliz o mundo, mesmo quando já tem garantida a condenação.
Porém, agora, em sua casa, choram os olhos de Blimunda como duas fontes de água, se tornar a ver sua mãe será no embarque, mas de longe, mais fácil é largar um capitão inglês mulheres de má vida que beijar uma filha sua mãe condenada, encostar a uma face outra face, a pele macia, a pele frouxa, tão perto, tão distante, onde estamos, quem somos, e o padre Bartolomeu Lourenço diz, Não somos nada perante os desígnios do Senhor, se ele sabe quem somos, conforma-te Blimunda, deixemos a Deus o campo de Deus, não atravessemos as suas fronteiras, adoremos deste lado de cá, e façamos o nosso campo, o campo dos homens, que estando feito há-de querer Deus visitar-nos, e então, sim, será o mundo criado». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT