sábado, 27 de abril de 2013

Evocação Histórica. Afonso Henriques. Mário Domingues. «Em 1055, Fernando I, já de posse do melhor bocado da Espanha cristã, pensou em ampliar ainda mais os seus Estados, agora à custa dos muçulmanos. Organizou as suas hostes e cruzando o Douro pelo lado de Samora, invadiu a Beira…»

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Irmãos, divididos pelo ódio e pela cobiça, guerreiam-se furiosamente
«Para ocupar o cargo de habjeb, governador militar, vago pela morte do famoso El-Mansur, foi nomeado Abd-el-Malek, o qual retomou a campanha guerreira em 1003, fazendo uma incursão pelo território que tem hoje o nome de Catalunha, para depois vir cercar Leão e reduzi-la a ruínas. Em 1007, cruzando Castela, foi correr a Galiza, matando e devastando. Destruindo Ávila, derrubou os castelos de Osma e Gormaz, e voltou a Córdova, enriquecido pelas pilhagens. A luta prosseguiu com vitórias alternadas, ora para um lado, ora para o outro, até 1027, ano em que Afonso V, atravessando o Douro e alastrando pelo norte da região a que os Árabes chamavam então Al-Gharb, veio pôr cerco a Viseu, Aí encontrou a morte, não em combate, mas quando passeava sossegadamente nas proximidades do castelo. Matou-o um virote disparado dentre as ameias inimigas.
Sucedeu-lhe Bermudo III. E logo se atearam as lutas habituais pela posse do trono apetecido, provocadas por nobres sempre insatisfeitos. Esta nova guerra civil, chefiada por Fernando Gonçalves, conde de Castela, que ambicionava o ceptro, rematou. Tragicamente para o novo monarca, que morreu às mãos do sôfrego rebelde numa batalha travada nas margens do rio Carrion. Vitorioso, Fernando Gonçalves avançou contra a capital, onde os moradores ainda quiseram resistir-lhe, mas acabaram por abrir-lhe as portas e aclamá-lo rei, como ele tanto desejava. A sua aclamação, porém, não era do agrado unânime da classe nobre. Fernando gastou os primeiros anos do seu reinado a lutar contra os grandes senhores feudais, para os reduzir à obediência da coroa, e a bater-se contra os Sarracenos, que por seu lado tão-pouco desarmavam. A monarquia de Leão e Castela entrara, finalmente, num período de sossego e prosperidade, quando, de súbito, se reacendeu a guerra civil, Garcia, rei de Navarra, achava-se doente em Naxera.
Fernando, seu irmão, correu a visitá-lo, ignorando que lhe armavam uma cilada. Escapou por pouco a uns fidalgos seus parciais que o simulado enfermo peitara para o prender. Não tardou, porém, muito tempo que Fernando não lançasse a mão ao rei de Navarra e o encerrasse numa enxovia no castelo de Cea. Garcia, no entanto, pôde evadir-se, subornando os guardas que o vigiavam.
Resultou destas cenas rocambolescas reatar-se a guerra civil. Garcia hostilizava o rei seu irmão, tal como este hostilizara os monarcas anteriores até se apoderar da coroa. O rei de Navarra, à frente dos seus apaniguados, fez uma violenta incursão em Castela, varrendo a ferro e fogo tudo quanto se lhe opunha. Fernando, reunindo então um numeroso exército, partiu em busca daquele irmão tão ambicioso como ele. Encontrando-o nas proximidades de Burgos e oferecendo-lhe batalha, infligiu-lhe uma derrota verdadeiramente catastrófica. Garcia morreu na peleja. Então, Fernando mandou conduzir o seu cadáver para Naxera e sepultá-lo na catedral daquela cidade, com todas as honras devidas à sua alta estirpe. Nada arriscava em prestar-lhes tantas homenagens depois de morto… As grandes casas reinantes assentam quase todas os seus alicerces em violências desta natureza.
Em 1055, um ano decorrido sobre estes acontecimentos, Fernando I, já de posse do melhor bocado da Espanha cristã, pensou em ampliar ainda mais os seus Estados, agora à custa dos muçulmanos. Organizou as suas hostes e cruzando o Douro pelo lado de Samora, invadiu a Beira e apoderou-se do castelo de Seia. Continuando a sua ofensiva nas Primaveras seguintes, foi-se assenhoreando de Viseu, Lamego, Tarouca e outras praças fortes. Em seguida, mudando o palco da luta para as fronteiras de Castela, foi sitiar Alcalá de Henares, que poupou, amansado pelas valiosas dádivas e súplicas do emir, que também se chamava Al-Mansur. Depois de regressar a Samora, onde permaneceu em repouso durante alguns meses, voltou a empreender outra incursão por território islamita e, cercando Coimbra, tomou-a, não sem ter de vencer enérgica resistência.
No ano imediato, o de 1065, correndo de novo as terras inimigas, atingiu Valença, de onde regressou doente a Leão, vindo a falecer nos fins de Dezembro. Deixou fama de o mais rude batalhador do seu tempo. Foi breve a duração do seu império, que se desmembrou após a sua morte. Sancho, seu filho primogénito, herdou Castela, tomando o título de rei; Afonso, o reino de Leão e Astúrias; Garcia, a Galiza; Urraca ficou soberana em Samora, e Elvira, em Toro. Não era muito fácil que todos estes filhos de Fernando se entendessem, Por morte de D. Sancha, viúva do poderoso monarca, surgiram as rivalidades latentes e a luta declarou-se entre os irmãos. Assim, Afonso e Sancho, este que tinha o título de rei de Castela, defrontaram-se numa sangrenta batalha junto ao rio Pisuerga, que terminou com a vitória do monarca. Decorridos três anos, em 1071, reacendeu-se a luta entre os dois irmãos, na qual interveio Garcia, senhor da Galiza, que enviou socorros a Afonso, rei de Leão e Astúrias. Desta vez, triunfou este último que, nas margens do Carrion, desbaratou as hostes de Sancho. Este teve de fugir, embora não fosse perseguido.
Mas um facto inesperado impediu Afonso de cantar vitória por muito tempo. Já vinha bastante afastado o exército vencido, quando Rui Dias, intemerato cavaleiro, que ficaria conhecido na história e na lenda pelo nome de El-Cid, convenceu o seu rei de que, se atacasse bruscamente os vencedores desprevenidos a gozarem o seu triunfo, poderia mudar do avesso a face dos acontecimentos. Então, Sancho voltou para trás e, pela calada da noite, caiu bruscamente sobre o arraial contrário e destroçou os seus inimigos. Afonso ficou prisioneiro do irmão, que o mandou cativo para Burgos, de onde fugiu algum tempo depois, indo acolher-se à protecção do emir Al-Mamum. Entretanto, Sancho marchou sobre Leão, apoderou-se da capital e reuniu à sua a coroa de Castela a de Leão, perdida por Afonso na sua derrota». In Mário Domingues, D. Afonso Henriques, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1970.

continua
Cortesia de Romano Torres/JDACT