segunda-feira, 18 de março de 2013

Rumor Branco. Almeida Faria. «Da porta a campainha toca. Pedro entra. É Regina quem ralha: ó pá vens encharcado despe esse casaco e descalça os sapatos olha prás calças alagadas do joelho pra baixo. Entram na sala. Tu levantas-te»

jdact e cortesia de mariobotas

I Fragmento
«Subitamente o telefone tocou. Ela não atende receia atendê-lo não quer interromper. O telefone tocou segunda vez. Tocou terceira vez. Tocou ainda mais agudo e intruso um pouco mais antes que Regina se levantasse e pegasse no auscultador sem desligar a gravação de onde começavam a sair as palavras seiscentistas de John Donne num soneto sagrado: sim és tu Pedro? Morte não sejas orgulhosa ainda que te tenham chamado poderosa e terrível pois não és nada disso morreu hoje a mãe da Graça pois aqueles que julgas que derrubas não morrem pobre morte nem mesmo a mim tu poderás matar foi de repente não sabemos do coração decerto assim tão rápido do repouso e do sono que são tuas imagens mais prazer que de ti muito mais deve fluir e os nossos melhores homens ao deitar-se contigo dão-te seus ossos só pois as almas te escapam deve estar lá agora ela não sabia de nada claro o Daniel João ficou desesperado escrava de fado sorte reis e homens desvairados convives com veneno prisão e hospital e a papoila ou feitiços nos põem igualmente a dormir passado um leve sono eternamente despertamos e a morte não será mais morte tu morrerás. Entretanto Regina desligara e ambos parecem meditar. Pensas em Graça que imaginas debruçada sobre a morte da mãe e não a procuras porque tens para ti que se tão escasso é o prazo ao corpo concedido para começar a corromper-se têm direito os que o amaram de estar a sós com ele. Mas isso ela não julgou quando partiu procurando-te primeiro naquele quarto depois no café em frente onde costumam encontrar-se e lhe disseram que saíste com uma rapariga. Enfim Graça foi para tua casa e acabou por se deitar sobre a tua dura cama quando lágrimas cresceram nos seus calmos olhos claros e as pálpebras começaram a pesar-lhe. Da porta a campainha toca. Pedro entra. É Regina quem ralha: ó pá vens encharcado despe esse casaco e descalça os sapatos olha prás calças alagadas do joelho pra baixo. Entram  na sala. Tu levantas-te. Vais apertar-lhe a mão: olá Pedro: eh pá que molha: há aqui conhaque vê se aqueces: prefiro um Cubalibre viva Cuba livre. Ela maternalmente: eu arranjo a bebida senta-te tens aqui sanduíches: obrigado Regina não jantei estou com uma traça incrível. Nervosamente Pedro tira o casaco põe-no sobre o aquecedor ligado do qual aproxima os fumegantes sapatos. Regina muito solícita: Pedro queres que coloque uma cassete de música electrónica: yes of course. Mecânico encaixe de bobinas botões e intenso alto ruído. Dois estudos electrónicos de Stockhausen. A memória te chega dos números das origens da música da matemática do ritmo. Dozevírgulasete trêsvírgulanove dozevírguladois vintevírgulasete setevírgulazero trêsvírgulatrês dozevírgulatrês umvírgulazero seisvírgulazero doisvírgulazero onzevírgulaquatro doisvírgulaoito dozevírgulanove dezoitovírgulaquatro setevírgulazero vinteetrêsvírgulaoito setevírgulazero dezvírgulaum dezvírgulasete catorzevírguladois. Frequências harmónicas puros sons sinusoidais como gráficas representações da função seno rumores brancos absolutos filtrados gelados reduzidos impulsos estalidos. Mundo interplanetário espacial do rumor branco que em si todos os rumores abrange os mundos todos. Voz do criador pelo homem assumida vária e vagamente ou monocórdica até que ao fim de todas as tormentas ao seio recolha à fonte humedecida donde agora a sua imagem só que ainda não ela volta. Voz desintegrada e aflita sombra apenas de arquétipo perfeito. Diz Pedro: tu Regina sentes o teu corpo quer dizer para além de dor ou mal-estar se estás doente mas eu sinto-me a mim mesmo alucinadamente foi só por isso que vim hoje ia no autocarro para a Baixa chovia sedeusadava havia nevoeiro casas ruas gente tudo era cinzento e pensei que a terra estava liquidada e os homens se arrastam alienados do real que os ignora e se vingam ignorando e vi que era vil a vida assim que era vil a minha vida e foi nesse exacto instante que o meu corpo se me tornou presente». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT