quinta-feira, 28 de março de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «A imprensa publicou já as máximas da inaudita jurisprudência deste tribunal, a análise dessas máximas e as consequências que têm resultado delas em muitos casos; mas ninguém, tem ousado revelar o que se passa no secreto dessa casa»

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Motivos que me moveram a dar a público a presente narração
«Todos sabem o que é a Inquisição (maldita) em geral; que ela fora estabelecida em certos reinos como a Itália, Espanha, Portugal e na maior parte das suas possessões do ultramar; que os juízes, que presidem esse tribunal, usam de nímia severidade nas suas decisões.

NOTA: A Inquisição (maldita), posto que nascida em França, não pôde ali conservar-se, apesar de ser organizada em 1255 por Alexandre III de acordo com S. Luís. Em 1221 foi introduzida por Inocêncio IV por toda a Itália, menos Nápoles, onde existiram trinta e dois tribunais da sua jurisdição, e pouco depois se estendeu pela Alemanha, mas não foi ali mais feliz que em França. Já no princípio do século XIII penetrara a Inquisição (maldita) a pouco e pouco na Espanha, mas desde 1478 foi organizada com estatutos regulares em Sevilha pelo zelo do cardeal Pedro Gonsalves de Mendonça, arcebispo daquela diocese. Porém, no reinado de Fernando e Isabel é que o primeiro inquisidor Torquemada lhe deu uma forma tão ampla e enérgica como feroz e sanguinária. Durante os dezoito anos do ministério daquele terrível inquisidor foram processadas 105 294 pessoas, das quais 8800 foram queimadas em pessoa e 6500 o foram em efígie. O abade Bergier acha que é exagerado este número. O contágio da Espanha não podia deixar de se comunicar a Portugal, mas vários motivos lhe obstaram, até que o rei João III, possuído de grande zelo da religião e vencendo muitas dificuldades, obteve do papa Paulo III a bula de 23 de Março de 1536, facultando o efectivo estabelecimento da Inquisição (maldita) no seu reino. Esta bula determinava que nos primeiros três anos seriam os réus processados nos termos regulares, à maneira do que se praticava nos crimes de homicídio e furto, e que só passados dez anos se poderia aplicar a pena de confisco. Também vulgarmente se atribui a introdução da Inquisição (maldita) ao espanhol Juan Perez de Saavedra, natural de Córdova, insigne falsificador de documentos, o qual, com o suposto carácter de núncio apostólico e uma bula também falsa, se apresentara na corte de João III, onde fora recebido com a consideração devida a eminente personagem, que afectara. Visitara uma parte do reino e com o pretexto de absolvições, indulgências e dispensas sacara avultadas somas, até que descoberta a impostura, no fim de seis meses, fora preso em Moura e processado pela Inquisição (maldita) de Espanha, que o condenara às galés. Passados dezanove anos de castigo, fora posto em liberdade por Filipe II, a instâncias do papa Paulo IV, que o desculpara como um instrumento de que Deus se servira para fazer grandes benefícios à Igreja. E assim, apesar deste desfecho, continuou a Inquisição (maldita) a exercer as suas funções como se fora legalmente criada. O Alexandre Herculano dá por falsa esta tradição. O frade de S. Francisco da província da Piedade, frei Diogo da Silva, que antes de ser religioso fora desembargador da casa de suplicação, e depois bispo de Ceuta, confessor de el-rei e finalmente arcebispo de Braga até o tempo de sua morte, obteve o cargo de primeiro inquisidor em Portugal. Foi no século XVII que a Inquisição (maldita) fez neste reino o mais terrível uso do seu poder. Desde o seu estabelecimento e durante o domínio dos Filipes, obtivera o maior favor das leis e o aumento da sua jurisdição, e só porque João IV se lembrara de a reformar e privar da pena de confisco, o seu cadáver teve de passar por uma absolvição solene para obter sepultura eclesiástica. Os autos-de-fé eram frequentes e até ao ano de 1792 apareceram nos cadafalsos em hábitos de infâmia penitenciados por este tribunal 22 058 réus e foram condenados ao fogo 1454. O marquês de Pombal, apesar de abrir aos cristãos-novos a caneira das honras e de fazer tantas reformas, não se atreveu contudo a extinguir a Inquisição de Portugal e contentou-se em reformá-la, convertendo-a em tribunal régio e tirando-lhe o carácter eclesiástico e a influência pontifícia. O jesuíta Malagrida, que não passava de um visionário, foi a última vítima condenada à morte por este tribunal. Desde então, o Santo Ofício (maldito), combatido pela opinião pública, caiu em descrédito; ainda perseguia, mas já não se atrevia a fazer alardo público da sua intolerância e sanguinárias sentenças, até que pela revolução de 1820 foi abolido com aplauso geral.

É igualmente certo que o rigor da Inquisição (maldita) não é uniforme em todos os países onde ela existe, porque a inquisição da Espanha é mais severa que a da Itália e menos que a de Portugal e suas possessões.

NOTA: Mas pior que a Inquisição de Portugal é a de Goa reputada por alguns autores; e entre outros pelo francês François Pyrard, que ali residiu desde Junho de 1608 até Janeiro de 1610, o qual na sua Viagem, 1858 diz que a Inquisição de Goa era mais severa que a de Portugal porque mui frequentemente queimava os judeus, a quem os portugueses chamam cristãos-novos, etc. O João Félix Pereira é outro autor que modernamente corrobora a opinião de Pyrard: A Inquisição de Goa se distinguiu por maiores rigores que todos os tribunais da metrópole; milhares de vítimas pereceram nas chamas; e quando estas sanguinolentas execuções faziam temer algum movimento sedicioso, os vice-reis e governadores, já não gozando a força aberta, empregavam o ferro dos assassinos e o veneno. É por estas e outras atrocidades que o sábio jurisconsulto Coelho da Rocha, pintando vivamente a intolerância com que Portugal pela sua Inquisição (maldita) tratava os estrangeiros, sujeitando seus navios à visita dos seus esbirros, e fazendo desaparecer o grande comércio a que a natureza destinara aquele reino, lamenta a Inquisição de Goa nestas sentenciosas frases: Nada há porém que iguale o desacordo de estabelecer o Santo Ofício em Goa, onde todas as considerações mandavam evitar a severidade religiosa para com homens ignorantes convertidos de pouco; e em uma praça onde mercadejavam nações tão variadas em crenças como em cor e origem. Após estes vultos europeus, citaremos, pela coincidência das mesmas ideias, os Quadros Históricos de Goa, de J. C. Barreto Miranda, que é um dos ornamentos da mocidade goana aplicada às letras, o qual, discorrendo sobre a Inquisição de Goa, diz (seguindo a Ferdinand Denis, no seu Portugal) o seguinte: As crueldades que em nome da religião da paz e amor praticava este tribunal na Europa, subiam a maiores excessos na Índia, onde os inquisidores, cercados dum luxo severo que não cedia em nada à magnificência real dos maiores potentados da Ásia, via com orgulho submetido ao seu poder tanto o arcebispo como o vice-rei. E por último, bastará para se fazer ideia da omnipotência da Inquisição de Goa o seu edital de 14 de Abril de 1736, que é um verdadeiro manifesto contra os usos e costumes religiosos dos indianos, documento importantíssimo, tirado pela primeira vez à luz do dia do arquivo da secretaria do governo pelo literato português que temos entre nós, o conselheiro Rivara, que tanto tem publicado sobre as coisas de Goa (Ensaio Históríco da Língua Concani, 1858.

A imprensa publicou já as máximas da inaudita jurisprudência deste tribunal, a análise dessas máximas e as consequências que têm resultado delas em muitos casos; mas ninguém, que me conste, tem até, agora ousado revelar o que se passa no secreto dessa casa, porque os inquisidores, empenhados em manterem ilesa a sua jurisdição, são os primeiros que ocultam ou não descobrem o triste sudário dos segredos da instituição». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT