sábado, 30 de março de 2013

Nadja. Leitura. André Breton. «Por mim, continuarei a habitar a minha casa de vidro, onde se pode ver a toda a hora quem vem visitar-me, onde tudo o que está suspenso dos tectos e das paredes perdura como por encanto…»

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«No que me diz respeito, mais importantes ainda do que para o espírito o encontro de certas disposições de coisas, me parecem ser as disposições de um espírito perante certas coisas; e acontece que estas duas espécies de disposições regem sozinhas todas as formas da sensibilidade. É assim que me descubro com Huysmans, o Huysmans de En Rade e de Là-bas, maneiras tão comuns de apreciar tudo o que se propõe, de escolher com a parcialidade do desespero entre o que existe, que se, com grande pesar meu, só pude conhecê-lo através da sua obra, nem por isso ele deixa de ser porventura o menos estranho dos meus amigos. Mas na verdade não terá ele, mais do que qualquer outro, levado ao seu termo extremo essa discriminação necessária, vital, entre o anel, de aparência tão frágil, que nos pode socorrer em todas as circunstâncias e o aparelho vertiginoso das forças que se conjuram para nos arrastar ao naufrágio?
Huysmans deu-me notícia desse tédio vibrante que lhe causaram quase todos os espectáculos; antes dele, ninguém soube, já não digo mostrar-me esse grande despertar do maquinal sobre o terreno devastado das possibilidades conscientes, mas pelo menos convencer-me humanamente da sua absoluta fatalidade e de quanto seria inútil ir aí procurar escapatórias para mim próprio. Como lhe estou agradecido por me ter posto ao corrente, sem cuidar do efeito a produzir, acerca de tudo o que lhe diz respeito, daquilo que o ocupa, das suas horas mais amargas e das outras, por não cantar absurdamente, como tantos poetas, essa amargura, mas enumerar com paciência, na sombra, as mínimas razões de ser, absolutamente involuntárias, que ainda consegue descobrir, e de ser, sem saber, bem para quem, aquele que fala! Ele é, também ele, o objecto de uma dessas solicitações perpétuas que parecem vir de fora e nos imobilizam por alguns instantes diante de certas ordenações fortuitas, de carácter mais ou menos novo, das quais, se nos interrogássemos porfiadamente, é provável que encontrássemos em nós o segredo. Distingo-o, será preciso dizê-lo?, de todos os empíricos do romance que pretendem pôr em cena personagens diferentes de si próprios e os arrumam física, moralmente, à sua maneira, só eles sabem porquê (nós preferimos não saber). De uma personagem real, de que julgam ter algum conhecimento, fazem duas personagens da sua história; de duas, sem qualquer embaraço, fazem uma. E ainda nos damos ao trabalho de discutir! Alguém sugeria a um autor meu conhecido, a propósito de uma obra sua que ia aparecer e cuja heroína podia ser facilmente reconhecida, que lhe mudasse ainda, pelo menos, a cor do cabelo. Loura, vá, lá, parece que teve sorte: a mulher que traiu não era morena. Não acho isto infantil acho-o escandaloso. Persisto em exigir os nomes, em só me interessar pelos livros rasgadamente abertos, como portas que não precisam de nenhuma chave. Estão felizmente contados os dias da literatura psicológica de efabulação romanesca, e certifico-me de que foi Huysmans a aplicar-lhe o golpe derradeiro. Por mim, continuarei a habitar a minha casa de vidro, onde se pode ver a toda a hora quem vem visitar-me, onde tudo o que está suspenso dos tectos e das paredes perdura como por encanto, onde repouso à noite entre os lençóis de vidro de uma cama de vidro, onde quem sou me aparecerá, mais tarde ou mais cedo, gravado a diamante». In André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.

Cortesia E. Estampa/JDACT