sexta-feira, 15 de março de 2013

Idade Média. O Crepúsculo em Portugal. António José Saraiva. «Nunca vos disse nulha ren de quanto mal mi por vós ven, senhor, deste meu coraçon; mas á-que-me em vossa prisom de me fazerdes mal ou bem»

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Alguns temas das cantigas de amor
«A diferença entre o amor vulgar, elementar, e o amor de grau mais elevado foi claramente definida por Dinis I a propósito da questão de saber se o amador devia ou não querer possuir o bem da amada. O rei-poeta entende que não, dando como razão que o prazer do amador seria prejuízo para ela; o que verdadeiramente ama não deseja tal recompensa; e os que a desejam não são verdadeiros amadores:
  • [...] e quem tal deseja, o bem de sa dama em mui pouco tem. Ele próprio, que escreve, destes amores falsos tem mais de cento.
Airas Nunes, culto e subtil clérigo, sustenta a mesma tese. Outro autor considera como bem recebido da dona a própria aspiração amorosa: tê-lo feito desejá-la é o bem que ela lhe concedeu. O amar é a recompensa do amor, parece um paradoxo de Camões. A beleza de uma dama, presente constantemente na sua recordação, é já recompensa de um poeta. Estes temas trovadorescos passarão ao Cancioneiro Geral e a Camões, quase três séculos depois. O amor, independentemente da recompensa da amada, consistindo numa aspiração, numa tensão para um objecto, e não na posse do mesmo objecto, tal como há-de inspirar Petrarca e Camões, encontra-se já nos cancioneiros. Numerosos poetas dirigem-se não à amada, mas ao Amor personificado, glorificando-o, agradecendo-lhe, queixando-se-lhe ou implorando-o. O clérigo Airas Nunes é autor de uma espécie de magnificat ao amor, do qual recebe esforço, esperança, alegria e bons pensamentos:

Amor faz a min amar tal senhor
que é mais fremosa de quantas sei,
e faz-m' alegr' e faz-me trobador,
cuidand' en ben sempr'; e mais vos direi:
faz-me viver em alegrança
e faz-me todavia (sempre) en ben cuidar.
Pois min amor non quer leixar
e dá-m' esforç' e asperança
rnal venh' a quen se del desasperar.

Como se pode desesperar do amor, pois se viver enamorado, seja qual for o resultado final, é já uma forma superior de vida que nos eleva à alegrança e aos grandes pensamentos? Outros que se gabem da sua linhagem, da sua riqueza ou do seu poderio; o poeta é superior a todos pelo seu amor, amando a quem o tem em seu poder, diz um autor, antecipando um conhecido soneto de Camões.
Compreende-se sem dificuldade o aparente paradoxo de os autores dos cancioneiros associarem constantemente aos seus amores profanos a ideia de Deus. Esta associação será também característica de Petrarca. Numerosíssimos poetas escrevem que foi Deus quem criou a beleza da senhor e quem a revelou ao apaixonado. Deus é o gerador da beleza e do amor e a causa dos sofrimentos do amante insatisfeito. Com que fim? - perguntam alguns. Para o perseguir, ou para lhe proporcionar a alegria de amar? As respostas variam e resvalam frequentemente pela heresia ou pela blasfémia.
De toda a maneira, o amor profano é divinizado e as alusões constantes a Deus servem para encarecer a sua sublimidade. Para que o amor profano se eleve a esta altura é preciso que se criem certas relações adequadas entre o amador e a amada. É preciso sobretudo que seja estreita e difícil a porta que o conduz a ela, quer essa estreiteza seja real, quer seja imaginária: tenha-se presente a Porte étroite, de Gide. A dona tem de ser inacessível, como a Laura de Petrarca ou a Beatriz de Dante. Os poetas dos cancioneiros fizeram desta dificuldade de acesso um dos seus temas favoritos. A dona não corresponde; mostra-se cruel ou indiferente para o apaixonado, que tem de suplicar longamente o seu favor. Nem por ser rei o poeta Dinis I deixou de se mostrar de joelhos aos pés da sua senhor:

Nunca vos disse nulha ren
de quanto mal mi por vós ven,
senhor, deste meu coraçon;
mas á-que-me em vossa prisom
de me fazerdes mal ou ben.

In António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva Publicações, Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT