sábado, 9 de março de 2013

Crónica Esquecida d’el rei João II. Leituras. Seomara Veiga Ferreira. «… via o irmão governar, orientar o sobrinho e conhecia o seu pendor ao fortalecimento do poder real em desfavor da velha nobreza territorial e guerreira. E isso não perdoava, não queria, não podia perdoar!»

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«No Verão de 1447, em Julho, Coimbra estava quente, os campos dourados da canícula, o rio pouca água carregava. As crianças brincavam no areal e chapinhavam nas poças entre os canaviais. O Regente Pedro recolhe-se ao seu paço, ao amor da família, ao convívio dos seus amigos íntimos, ao conselho e companhia dos seus livros e pensamentos. Certamente nem sequer suspeitou que pouco lhe festava de vida para o tempo que desejava para si e os seus e a consumação do seu sonho político. Dois anos e meio, mais dia menos dia. No seu ninho de águia, em Guimarães, o irmão vigiava. Não sei se Pedro, num momento de lazer, por entre os seus inúmeros afazeres que a administração da sua casa exigia, terá relido Yvain Le Chevalier au Leon, de Chrétien de Troyes, nalguma cópia que os monges franceses vendiam e, nos conventos ingleses, os santos monges copiavam e também distribuíam, com os textos de Séneca, Cícero, Platão ou Hipócrates, para os países como Portugal, Castela ou Borgonha. Deve ter sorrido ao ler a descrição do unguento mágico que cura a loucura e que a fada Morgana inventou e que tanta falta faria ao seu irmão Bragança, ou a estranha descrição do sangue que se liquefez no corpo do homem assassinado quando dele se acercou o seu assassino... As lendas das histórias da cavalaria seguiam o seu caminho como ainda hoje, em alguns lugares... O seu cálice do destino iria, sob a serpe do seu nome, encher-se do seu próprio sangue, mas isso não vinha escrito em lugar algum a que ele pudesse ter acesso. Apenas se insculpia a letras rasgadas à lâmina na alma dos seus inimigos cujo ódio foi como o fogo que jamais se sacia.

A Morte do Cisne no Campo do Leão
Se Pedro encarnou durante alguns momentos o mito do cisne, não foi santo, mas Afonso de Bragança, se foi a ave de rapina despeitada e voraz que todos conheceram, também não foi apenas o ogre, a fada má, o homem sem qualidades. Teve-as. Foi bom pai, marido devotado, extremoso avô, foi duro e cruel nos seus castigos, mas também soube conceder-se a alegria da tolerância, especialmente se isso pudesse pôr a recato os seus interesses. Isto não quer dizer que nele campeassem apenas os defeitos... Foi virtuoso, à velha moda antiga, chegava a manifestar bom coração para fiéis e servidores, mas o sangue bastardo do velho sapateiro de Veiros aplacava-lhe a clemência, escurecia-lhe a visão, endurecia-lhe a alma. Conheci muitos homens como ele, e, além do mais, não perdoava qualquer cerceamento aos seus poderes, benefícios e garantias. Eu também sou filho de Rei!
Era-o mas preferia esquecer o sangue alentejano do Barbadão. Porque não? A quantos milhões e milhões de homens isso aconteceu ao longo da História? Agora, ainda por cima, estava velho, via o irmão governar, orientar o sobrinho e conhecia o seu pendor ao fortalecimento do poder real em desfavor da velha nobreza territorial e guerreira. E isso não perdoava, não queria, não podia perdoar! Era saudável, apesar de muito velho, resistente e teimoso. Por isso resolveu-se a afastar o irmão. Era suficientemente inteligente para compreender que bastava estragar-lhe os planos, o esquema que laboriosamente, desde a juventude, elaborara e continuava nele a perseverar. E fê-lo nesse mês de Julho de 1448, de longe, enquanto o irmão estava em Coimbra, embora já em 1447 começasse a intriga a cercar o pobre e inofensivo Rei que, tal como a mãe, se via permanentemente acossado.
Claro que o início da guerra, ou o seu reacender, aconteceu nas Cortes de Lisboa de 1446 em que um dos grandes apoiantes do partido de Pedro, o desembargador Diogo Afonso Mangancha, de joelhos, entregou a vara da justiça ao Rei que a aceitou. Dias depois, coagido pelo tio, entregou-lhe de novo o poder. Sucede que isto era o que os inimigos do Regente necessitavam para preparar o cerco ao jovem e inexperiente Monarca. O conde de Ourém, o arcebispo de Lisboa e o tio Afonso tomaram as rédeas do movimento. Nesse mês de Julho Afonso prepara, acolitado pelos tios e primo, um golpe de estado, pretendendo afastar a tutela do tio. O que se seguiu foi o primeiro acto de Fartar, Vilanagem!, da vida do ex-Regente.
O duque de Bragança que, entretanto, se transferira para Chaves, depois de ter recebido notícias através do filho e do cunhado que tinham pressionado o Rei a correr com o tio e sogro, reuniu os seus homens e desceu do Norte, do Marão, do Minho, até Guimarães, depois de andar mais acima a arrebanhar a sua gente de guerra, e veio até ao Porto». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT