quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Se Isto é um Homem. Primo Levi. Tradução de Simonetta Neto. «Sendo judeu, fui mandado para Fóssoli, perto de Módena, um campo de internamento, outrora destinado aos prisioneiros de guerra ingleses e americanos, ia recolhendo os pertencentes às numerosas classes de pessoas não gratas ao recém-criado governo fascista republicano»

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Se isto é um homem
Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome
sem mais força para recordar
vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
recomendo-vos estas palavras,
esculpi-as no vosso coração
estando em casa andando pela rua,
ao deitar-vos e ao levantar-vos;
repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

A Viagem
«Fui capturado pela Milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943. Tinha vinte e quatro anos, pouco bom senso, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação, favorecida pelo regime de segregação ao qual desde há quatro anos fora obrigado pelas leis raciais, para viver num mundo só meu, pouco real, povoado por civilizados fantasmas cartesianos, por sinceras amizades masculinas e por amizades femininas evanescentes. Cultivava um moderado e abstracto sentido de rebelião.
Não fora fácil para mim escolher a via das montanhas e contribuir para pôr de pé a que, na minha opinião e de outros amigos pouco mais experientes do que eu, deveria transformar-se numa brigada de partigiani (assim se chamaram os resistentes armados contra os nazis-fascistas em Itália)  filiada no grupo Giustizia e Libertà. Faltavam-nos os contactos, as armas, o dinheiro e a experiência para os arranjar; faltavam os homens capazes e, pelo contrário, estávamos submersos por um dilúvio de pessoas desqualificadas, de boa e de má-fé, que chegavam até lá acima vindas da planície à procura de uma organização inexistente, de quadros, de armas, ou apenas de protecção, de um esconderijo, de uma fogueira, de um par de sapatos.
Naquele tempo, ainda ninguém me ensinara a doutrina que mais tarde haveria de aprender rapidamente no Lager, segundo a qual a primeira tarefa do homem é tentar alcançar os seus objectivos com meios adequados, e quem errar, paga; por isso, não posso deixar de considerar justo o sucessivo desenrolar dos acontecimentos. Três centúrias da Milícia, partidas no meio da noite para surpreender outra brigada, bem mais potente e perigosa do que a nossa, aninhada no vale adjacente, irromperam numa espectral madrugada de neve no nosso refúgio e levaram-me para o vale como suspeito. Nos interrogatórios que se seguiram, preferi declarar a minha condição de cidadão italiano de raça judaica, pois julgava que não conseguiria justificar de outra maneira a minha presença naqueles lugares demasiado isolados mesmo para um desalojado, e pensava, sem razão, como se viu depois, que admitir a minha actividade política comportaria torturas e morte certa.
Sendo judeu, fui mandado para Fóssoli, perto de Módena, onde um amplo campo de internamento, outrora destinado aos prisioneiros de guerra ingleses e americanos, ia recolhendo os pertencentes às numerosas classes de pessoas não gratas ao recém-criado governo fascista republicano. Na altura da minha chegada, isto é, em finais de Janeiro de 1944, os judeus italianos no campo eram cerca de cento e cinquenta, mas em poucas semanas o seu número ultrapassou os seiscentos. Tratava-se, na maioria dos casos, de famílias inteiras, capturadas pelos fascistas ou pelos nazis por causa da sua imprudência, ou em consequência de uma delação. Alguns, poucos, tinham-se entregue espontaneamente, ou por terem chegado a um estado de desespero devido à vida errante, ou por estarem completamente despojados de meios de subsistência, ou para não se separarem de um familiar capturado, ou até, absurdamente, para se legalizarem. Havia também uma centena de militares jugoslavos internos, mais alguns outros estrangeiros considerados politicamente suspeitos». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, 10ª edição 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.

Cortesia de Teorema/JDACT