quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Príncipe Constante. Pedro Calderón de la Barca. O Infante Santo. Maria Idalina Rodrigues. «Viu ser cativo o santo irmão Fernando, que a tão altas empresas aspirava, que, por salvar o povo miserando cercado, ao Sarraceno se entregava. Só por amor da pátria está passando a vida…»



Cortesia de wikipedia e jdact

«Arrancou a experiência da adaptação polaca de Julius Slowacki (1844) que, romântico e polaco, em Calderón, mais intensamente recolheu o aprendizado de um sofrimento passivo de um oprimido do que o filão subjacente do conflito de religiões. Reeditado em 1930, e seguido na sua lógica interpretativa, o texto foi adoptado pelo teatro laboratório de Wroclaw, que Grotowski orientou entre 1965 e 1968, com critérios cientificamente preferenciados que ora o aproximavam, ora o afastavam do original espanhol, com um final que nem sequer dramatizava a vitória última dos cristãos.
No palco, independentemente das rigorosas exigências postas ao protagonista, apreciava-se uma talentosa Companhia, em que significativamente se cruzavam os papéis e inteligentemente se contradiziam os registos, numa conseguida (?) tentativa de modular por imperativos do século XX uma peça recheada de condimentos seiscentistas ibéricos. Sendo, contudo, desta feita, o nosso alvo bem outro, permitimo-nos ultrapassar juízos sobre a qualidade do grande homem de teatro que foi Grotowski (1999), retroceder no tempo e dar o sinal de partida para a anunciada revisão do circuito textual que foi possível enlaçar.

Com Camões na encruzilhada
Terá realmente lançado Camões a primeira pedra para a imposição mítica da figura do infante Fernando como mártir voluntário, corajosamente rejeitando a troca da sua libertação pela restituição de Ceuta aos muçulmanos? Possível, possível não deixa de ser, mas nisso não vale a pena fazer finca pé, porquanto, se os juízos sobre o Infante Santo algumas reviravoltas têm conhecido, ao longo dos séculos, quem sabe de que outra documentação ainda poderemos vir a dispor para melhor e mais frutuosamente nos enredarmos nos retoques de um perfil que, valha a verdade, só a uma reduzida parcela de gente inquieta continua a interessar, uma vez que à desavença entre o rigor de uma praticamente aceite verdade histórica e o labor do imaginário colectivo não será fácil colocar um termo (e será desejável?).

NOTA: O que, sim, julgamos saber é que o infante Fernando está depositado no Mosteiro da Batalha, na capela real, na parede sul; tem como divisa le bien me plet; deve ter tido a encimar o túmulo pequenas gravuras com fases do seu martírio, mas hoje, delas, não restam traços.

Para começar, a Camões o que a Camões pertence, quando, no Canto IV d’Os Lusíadas, ao referenciar as desditas de Duarte I, como o contraponto da Fortuna às vitórias da ínclita geração, nos conta entre magoado e orgulhoso:

Viu ser cativo o santo irmão Fernando
(que a tão altas empresas aspirava),
que, por salvar o povo miserando
cercado, ao Sarraceno se entregava.
Só por amor da pátria está passando
a vida, de senhora, feita escrava,
por não se dar por ele a forte Ceita.
Mais o público bem que o seu respeita.

Codro, por que o inimigo não vencesse,
deixou antes vencer da morte a vida;
régulo, porque a pátria não perdesse,
quis mais a liberdade ver perdida.
Este, por que se Espanha não temesse,
a cativeiro eterno se convida!
Codro nem Cúrcio, ouvido por espanto,
nem os Décios leais, fizeram tanto.

Comentemos as achegas:
  • primeira (atrás adiantada), se um santo irmão teve o rei, decorreu essa santidade do oferecimento espontâneo a um pesado cativeiro;
  • segunda, o suporte para tão difícil e corajosa opção não foi senão o da incontornável fidelidade à pátria.
Para os de menos memória, a recapitulação: Codro deixou-se matar para evitar o triunfo dos dórios sobre Atenas, Régulo, prisioneiro em Cartago, tendo sido mandado a Roma para preparar um tratado de paz que permitisse permuta de prisioneiros (no número dos quais se encontrava), aconselhou o Senado a não o levar por diante, tendo sido morto ao regressar a Cartago; os Décios (pelo menos, pai e filho) foram vencidos e traiçoeiramente assassinados quando tentavam cortar a retirada dos inimigos, Cúrcio tombou numa cova armadilhada para que se não enfraquecesse o ânimo dos seus.

Codro, Décios, Régulo, Cúrcio, cada qual a seu modo, pela pátria ofereceram a vida. As comparações não poderiam ser mais explícitas em termos de assumida coragem e desprendimento pessoal. Ora, a verdade é que, se por um lado, esta camoniana abnegação do Infante, falo do voluntário sacrifício, não da paciência na adversidade, que se saiba, ainda não tinha sido aduzida por historiadores e biógrafos, também verdade é que, de martírio em defesa da fé cristã, não há por aqui entusiasmantes notícias». In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.

Cortesia de Via Spiritus/JDACT