sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «A carência de textos escritos, e o carácter oral de todas as literaturas nos seus primórdios pode muito bem explicá-la, com especial adequação no que ao teatro se refere, está longe de constituir um óbice intransponível a que haja um teatro pré-vicentino»


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«… silêncio que seria errado interpretar como oclusão momentânea do lirismo nacional: quando muito, a falta de textos, que não deve confundir-se com a sua inexistência, pois apenas significa desconhecermo-los actualmente, poderá imputar-se a uma crise de crescimento de uma poesia que começava a emancipar-se dos esquemas paralelísticos da tradição galega e demandava, sob o influxo do espírito renascente, novas formas e novos estilos. Quem se atreveria a concluir, dessa ausência de textos, que a voz da poesia portuguesa tivesse emudecido durante um século, que durante um século houvesse estancado o veio do lirismo nacional? Eis porque se nos afigura revestir-se, neste sector como aliás de um modo geral em todos os capítulos da História da Literatura, de uma premente acuidade a severa advertência de Leo Spitzer aos teorizadores da cultura para que não construam as suas falazes arquitecturas sobre a área movediça do estado momentâneo e transitório da sua informação histórica, em vez de o fazerem sobre factos permanentes da cultura.
É, precisamente, a consideração desses factos permanentes da cultura que nos leva a rejeitar a tese absurda de que, antes de Gil Vicente, o teatro fosse desconhecido em Portugal. Não se compreenderia com efeito, que as manifestações dramáticas características da Idade Média, tanto as de natureza religiosa como as profanas comuns a toda a Europa, como pode dizer-se que eram, não houvessem chegado ao extremo ocidental da Península Ibérica. Como aceitar, por exemplo, que, não obstante a interdependência das literaturas lusitana e espanhola, de que é expressivo testemunho o lirismo galaico-português dos nossos primeiros Cancioneiros, os ecos do teatro medieval castelhano não tivessem repercutido em Portugal? Como explicar que as ordens religiosas, de cujo seio os mistérios e as moralidades emergiram, separando-se gradualmente do ritual litúrgico, ao instalar-se em Portugal não trouxessem consigo esses fermentos de que germinou o teatro moderno? Como admitir que jograis e trovadores, nas suas peregrinações por terras lusitanas, não incluíssem no seu repertório a narração, dialogada e mimada, de episódios burlescos ou inspirados nas novelas de cavalaria, nos evangelhos e nos livros hagiográficos, que tão grande popularidade alcançaram noutros países e que embrionariamente eram já teatro? Permeável a diversas influências culturais, que nomeadamente através do caminho francês conducente a Santiago de Compostela e dos trovadores oriundos da Provença lhe chegaram, como poderia a sociedade portuguesa manter-se refractária ao irresistível e impetuoso surto dramático medieval? E, alargando o âmbito da questão a um plano mais genérico: acaso será concebível que o instinto mimético, a natural propensão lúdica, a espontânea tendência imitativa, que se encontram na origem do teatro, durante os três séculos e meio que aproximadamente decorreram desde a fundação da nacionalidade à representação do primeiro auto vicentino, se não tivessem manifestado em Portugal?
A carência de textos escritos, e o carácter oral de todas as literaturas nos seus primórdios pode muito bem explicá-la, com especial adequação no que ao teatro se refere, está longe de constituir um óbice intransponível a que haja um teatro pré-vicentino. Aliás, esses textos existem, ainda que em número reduzido; e, sobretudo, a par deles possuímos documentos que nos dão indirectas, mas preciosas e irrecusáveis notícias de um teatro anterior a Gil Vicente, em cuja obra, transfigurados pelo seu génio poético, subsistem os principais elementos desse teatro.
De resto, e mesmo descontada a influência do drama pastoril castelhano de um Juan del Encina, a que também Garcia de Resende não deixava de referir-se nas suas trovas citadas, dificilmente se compreenderia que Gil Vicente, ou como ele qualquer outro autor isolado, pudesse fazer nascer ex nihilo um teatro. O perfeito acabamento estético da obra vicentina, a multiplicidade de estruturas dramáticas que nela se combinam e em que se organiza, pressupõem necessariamente uma gestação anterior cuja inexistência o génio do seu autor, por maior que fosse, o que aliás não está em causa, era só por si insuficiente para justificar. Aceita-se que Gil Vicente haja dado uma forma e um conteúdo, um sentido e um estilo literários, a elementos rudimentares e até então dispersos; mas não se aceita, por cientificamente inverosímil, que 1502, ano em que surge o Monólogo do Vaqueiro seja o ano zero do teatro português. Por outras palavras: a obra dramática de Gil Vicente poderá, sim, representar aquele momento de uma evolução dialéctica em que a quantidade engendra uma nova qualidade». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

continua
Cortesia do Instituto Camões/JDACT