segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos. António Borges Coelho. «Se o título de senhor da Guiné tem de esperar por João II, numerosos documentos e em particular as bulas papais revelam que as ilhas atlânticas e os territórios para lá do Bojador interessavam profundamente alguns dirigentes nacionais, em particular os infantes Henrique e Pedro»


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Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
«Inicialmente houve mesmo resistência e murmurações contra as viagens de descobrimento, como referem Zurara e Duarte Pacheco Pereira. Mas à medida que o proveito justificava os sacrifícios, as navegações para lá do Bojador ganhavam importância progressiva até que o rei João II se intitulou senhor de Guiné. Zurara escreve que, quando Antão Gonçalves chegou a Lisboa com 55 escravos, se juntou na Ribeira uma multidão que ia alagando as caravelas, trocando as murmurações do passado por louvores ao infante quando viam levar aqueles cativos em cordas ao longo daquelas ruas (Crónica da Guiné). Por sua vez, Duarte Pacheco Pereira acrescenta com evidente exagero geográfico: grande parte da gente de Portugal ganha de comer na terra que o Infante descobriu (Esmeraldo). Exagero geográfico, porque o grosso do rendimento provinha de Portugal e da Mina, que o infante não descobriu.
João de Barros sintetizou mais tarde deste modo os proveitos de Guiné:
  • Quanto ao acrescentamento do património real, eu não sei em este reino jugada, portagem, dízima, sisa ou algum direito real mais certo nem que regularmente cada ano assim responda sem rendeiros alegarem esterilidade ou perda, do que é o rendimento do comércio de Guiné. E tal que se o soubermos agricultar e granjear, com pouca semente, nos responderá com maior novidade que os reguengos do reino e lezírias do campo de Santarém. E mais é propriedade tão pacífica, mansa e obediente que sem termos uma mão em o murrão aceso sobre a escorva da bombarda e a lança na outra, nos dá ouro, marfim, cera, coirama, açúcar, pimenta, malagueta. E daria mais cousas se tanto quiséssemos dela descobrir como descobrimos além dos povos Japões que passam acerca de nós por Antípodas ou Antictones. (Ásia, I)
Se o título de senhor da Guiné tem de esperar por João II, numerosos documentos e em particular as bulas papais revelam que as ilhas atlânticas e os territórios para lá do Bojador interessavam profundamente alguns dirigentes nacionais, em particular os infantes Henrique e Pedro. Mas as bulas papais da década de 50 levantam-nos algumas questões. Antes de mais, o poder espiritual do papa garantia a legitimidade da propriedade material das novas terras navegadas, mais precisamente legitimava, erguendo os sagrados raios da excomunhão contra os prevaricadores, o direito exclusivo de Portugal à navegação para as terras africanas.
Outra questão consiste em saber quanto custaram essas bulas à arca do infante, ao erário régio e ao trabalho camponês em Portugal. Esta pergunta parece-nos legítima se atendermos às seguintes razões:
  • estamos já na época em que os papas se comportam como príncipes da Renascença;
  • em segundo lugar, o infante João, no seu parecer de 1436 sobre a ida ou não ida a Tânger, esclarece alto e bom som que por mil dobras se obtém do Vaticano não só indulgências como outras graças maiores;
  • finalmente, porque receberia o infante Henrique, sem protestos dos outros nobres, o espantoso assentamento de 16 contos de réis, sabendo-se que morreu crivado de dívidas (a quem?, esta pergunta levava-nos a outro problema, ao problema do investimento) e sem bens móveis, designadamente navios ou instrumentos náuticos que justificassem tamanhas despesas num príncipe tão austero.
Importa esclarecer contra quem são publicadas as bulas. Antes de mais, ao atribuir-se a propriedade das navegações ao infante Henrique e à coroa de Portugal, as bulas excluíam automaticamente os outros Estados da Cristandade. Pensamos, no entanto, que no imediato as bulas se dirigiam contra os navegadores estrangeiros e portugueses que ficavam proibidos de navegar sem licença do infante. Dito por outras palavras, a bula Romanus Pontifex garantiu e protegeu com raios sagrados o primeiro grande monopólio português da época moderna, o monopólio henriquino da navegação na costa africana.

Fases e modelos
Nos Descobrimentos Portugueses distinguem-se dois períodos principais:
  • um primeiro, que se anuncia já no século XIV, mas que se desenvolve de forma sistemática após a tomada de Ceuta e culmina com a viagem de Vasco da Gama;
  • e um segundo período, o do século XVI, com o avanço rapidíssimo pelo Índico e o Pacífico.
No primeiro período, o que agora nos importa, podemos distinguir quatro fases. Uma primeira que remonta ao século XIV e é marcada pela actividade progressiva dos pescadores, mercadores e marítimos portugueses que navegavam o mar de Espanha e o mar Mediterrâneo. Numa segunda fase, aberta com a conquista de Ceuta, desenvolvem-se as navegações dos corsários, acontece a redescoberta da Madeira, do Porto Santo e dos Açores e largam as primeiras viagens sistemáticas pela costa africana, viagens que poderíamos caracterizar ainda como actividade de corso. Uma terceira fase abre-se com o estabelecimento do comércio pacífico, tentado na regência de Pedro e que se institucionalizará com a feitoria e castelo de Arguim. A última fase remonta ao princípio da década de 70 e vai até à viagem do Gama. Duarte Pacheco caracteriza deste modo o período joanino sob o ângulo das preocupações de cariz científico:
  • em tempo do infante Henrique e del-rei Afonso a costa do mar somente era sabida, sem se saber o que dentro neles, nos lugares e rios de Guiné, era (Esmeraldo).
In António Borges Coelho, Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar a História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN 972-21-0957-X.

Cortesia da Caminho/JDACT