quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «O homem, sim, o homem era um incómodo. O homem merecia, segundo El-Rei, arder numa fogueira depois de ter sido esticado numa roda de suplício e largos pedaços da pele terem-lhe sido arrancados e salgados sobre chaga viva...»

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« - Raro e muito bárbaro e agreste, quase ao modo dos da mui recente descoberta Terra de Vera Cruz tal como os que já dela vieram agora a descrevem, senão que estes são alvos e tão curtidos de frios que a alvura se lhes perde com a idade, e ficam como baços. São de corpo meãos, muito ligeiros, e grandes frecheiros, servem-se paus tostados em lugar de azagaias, como que ferem de arremesso como se foram de aço fino; vestem-se de peles de alimárias, de que na terra há muitas, vivem em cavernas de rochas e choupanas, não têm 1ei, crêem muito em agoiros, guardam matrimónio e são muito ciosos de suas mulheres, nas quais coisas se parecem com os Lapões, que também vivem debaixo do Norte, de setenta a oitenta e cinco graus, sujeitos aos reis da Noruega e da Suécia, aos quais pagam tributo, ficando sempre em sua gentilidade, por falta de doutrinas...
 - Mas o que sucedeu a esses Cortes Reais? E porque não se interessou o rei? - O rei só se interessa de si e suas fortunas, e nem gosta de bacalhaus, carne de peixe sem graça...
  • E dos Cortes Reais deixou de haver rasto. Primeiro desapareceu um, depois o irmão partiu por ele e desaparecido ficou, e a pimenta ê que vale ouro, não são os bacalhaus, o rei nem se ralou mais... Quem se ralaria com uma terra que só dá peixe de mau sabor, e com dois tontos embarcadiços que demandam à toa, pensou El-Rei e deu de ombros...
 - Isto é reino enfermo de males! - O mal maior inda será El-Rei. - Mal enorme é outro: é de haver mania de inculcar no povo que todos os males vêm de nós, cristãos-novos ou judeus. Isso é que é mal que nos perderá... Ficaram todos em silêncio a pensar na verdade e nas consequências desta afirmação.

O homem mergulhava a pena de pato no tinteiro e depois usava-a até à última gota aproveitada numa letrinha exacta e de ideias firmes. O homem, como todos os que escrevem, por mais que inventasse fazia-o sempre em abono da verdade. Talvez por isso a sua mão fosse tão segura, a letra tão direita, as ideias tão directas. O homem, por isso, não era querido de El-Rei. Mas a que poder poderá estar rendido quem escreve? A que poder poderá agradar quem tem apenas o poder de modificar as mentiras deste Mundo?
Fortes são os fracos que se respeitam a si próprios e têm, sobretudo, consciência das suas fraquezas... O homem escrevia. E fazia-o, sem piedade, sem emoções maiores do que as emoções que se extraem das ideias, fazia-o sobre a figura de El-Rei. Fazia-o com exactidão. Que El-Rei era perito em torpezas e que era cruel. Que tinha os braços compridos de símio e os olhos leitosos doentios. Que tinha uma alma de perdido que o levara a ir-se aos judeus para os pilhar e humilhar e aos seus servidores mais destacados a exilá-los, desprezá-los, a ignorá-los e a traí-los.
O homem, sim, o homem era um incómodo. O homem merecia, segundo El-Rei, arder numa fogueira depois de ter sido esticado numa roda de suplício e largos pedaços da pele terem-lhe sido arrancados e salgados sobre chaga viva... Um olho vazado a sangue-frio, paus em chama espetados nas unhas dos pés, ferros em brasa a desenharem arabescos nos costados... Uma morte lenta e muito sofrida, era o que o homem merecia, de acordo com a opinião de El-Rei. O homem escrevia. O homem contava com crueza impiedosa a imagem real de um rei nem impoluto, nem dissoluto, apenas bruto e espúrio no pensar, no pouco sentir, e no muito errado agir. Sortudo, porém, e por tal impune. Todo-poderoso e sem conselho. Autónomo no errar, nisso sendo perito, um venturoso...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT