quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Memória Viva. Dávamos Grandes Passeios ao Domingo. Feliciano Falcão. «Na ardência humana que franja essa temática. Porque a sua caminhada é comum a todo o ser que sente, que pensa, que age. Que sofre. Que ama. Que sonha. Desde o pasmo do nascer. No espasmo de viver. Para depois morrer»

jdact

Dávamos Grandes Passeios ao Domingo
«Em vezes que não foram poucas, eu escrevi sobre José Régio. No jornal A Rabeca e noutros lados. E falei, também. E até na televisão, depois do 25 de Abril. Lembro-me da primeira. Em 1941. Quando vivia em Alegrete, como médico. (Ali, num meio primitivo e devastador. Sem glória, sem proveito. sem a protecção estatal para as tarefas de saúde integral). Ao discorrer acerca dos Poemas de Deus e do Diabo, num artigo cheio de calor e de adjectivações entusiásticas. Em palavras que, sem o esperar, deram polémica na nossa pacata cidade. Com este escrito nos encontrámos. E, assim, eu tive, aqui, em Portalegre, a sorte rara de conhecer um Homem e um Génio.
Um Homem e um Génio, que é a síntese que fui fazendo, no correr do tempo, deste meu Amigo. Numa convivência de quase trinta anos. Na leitura da sua obra imensa e multímoda. A descobrir nessa convivência uma natureza humana riquíssima. A descobrir nessa leitura uma escrita avassaladora e ímpar. O Homem. O Homem que eu descobri. Na solidão e na solidariedade.
Na solidão impressionante da sua casa no largo da Boavista. Da sua casa velha, grande, tosca e bela, cheia de silêncios e espantos..., onde, com excepção dos Poemas... e da Biografia, imaginou toda a sua obra imorredoura. Na solidariedade entre os amigos. Igualitário no contacto. Sem egotismo. Sem narcisismo. A abrir-se, com o fascínio da sua fala lenta e pausada, na abordagem dos escritores que amava. Camilo, Antero, Nobre, Cesário, Florbela, Irene Lisboa, Sá-Carneiro, Sérgio... Flaubert, Tolstoi, Dostoievski... A abrir-se, senhor de uma fina sensibilidade e de uma inteligência superior, em diálogos intérminos, transfiguradores e formadores. A conduzir-nos, com o seu rigor e a sua exigência (o seu socratismo...) ao raciocínio claro e à maturidade dos juízos. À nossa definição, à nossa personalização. A respeitar-nos as opções e a liberdade.
Na solidariedade, na solidariedade escondida. A responder a cartas de semelhantes em aflição. Desconhecidos. A prestar-lhes ajuda moral e material. Em que depauperava mais a sua magra bolsa, sempre desequilibrada com os gastos do coleccionador infatigável de arte sacra e popular que era. (Esta é uma das faces ocultas de José Régio. A praticar o cristianismo no real. Em que a maior parte dos cristãos o pratica mal). Na solidariedade, ainda. Na solidariedade com o nosso povo. Contra a inumanidade de Salazar e a hediondez da ditadura. Na defesa de uma polis racionalizada, a pregar a Democracia. Como elemento acérrimo do MUD e partidário, na primeira linha, de Norton de Matos e de Humberto Delgado, nas campanhas presidenciais de 49 e 57. O Génio de José Régio.
Na nudez e na totalidade do vital. Sem instintivismos, ou humorismos, ou esteticismos. E que nessa nudez e nessa totalidade é do mais tenso e do mais patético da nossa literatura de todos os tempos. Na suma admirável dos seus poemas, dos seus romances, das suas novelas, dos seus contos, dos seus dramas. (Na intelecção lucidíssima dos seus ensaios e das suas críticas). Suma em que dividido entre o humano e o seu divino, perpassa a luta sem tréguas do seu ego consigo próprio. A sua fome de vida. A sua sede absoluta. O seu desejo de Deus. Na interrogação. No grito. Na confissão.
Em que perpassa a fraternidade com os humilhados e os ofendidos. Espoliados na sobrevivência e na dignidade, pelos prepotentes, pelos privilegiados e pelos ostentadores do dinheiro e do luxo. Em que a imagem da Mulher nos é dada com compreensão e amor. Nas suas consumições, nas suas frustrações, nas suas alienações. Que eu seja agnóstico e materialista do ponto de vista filosófico, cingido, portanto, à terrenidade, não obsta que admire o espírito criador de José Régio até à ilimitação. No fulcral da sua temática de fogo, na senda da religiosidade e da mística.


Na ardência humana que franja essa temática. Porque a sua caminhada é comum a todo o ser que sente, que pensa, que age. Que sofre. Que ama. Que sonha. Desde o pasmo do nascer. No espasmo de viver. Para depois morrer. Daí, destas palavras que aqui deixo, eu ousar dizer que José Régio, com o seu polimorfismo, o seu poliedrismo, a sua circularidade, é a figura literária mais singular do nosso século. No meio de tantas individualidades que também me deslumbram». In A Cidade, n.º especial dedicado aos 15 Anos da Morte de José Régio, 1984.

In Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.