sábado, 12 de janeiro de 2013

Cartas a Ninguém. Ilustração de Ingrid Martins. Lisa flores. « Uma borboleta que esvoaça, ou uma brisa ligeira que sacode uma folha de bambu, pode ser o elemento que cala a solidão e reclama a alegria. “Ah este caminho que já ninguém percorre a não ser o crepúsculo”»

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«Se captarmos as mudas palavras das plantas e os seus silenciosos movimentos, estaremos a intensificar as nossas impressões através do equilíbrio da forma no espaço. As plantas colhidas da Natureza são arranjadas de forma a conterem uma nova beleza, quando colocadas num ambiente diferente. A ikebana não é uma mera reprodução daquilo que a planta e a flor representavam na Natureza. É uma criação artística com ramos, folhas e flores, marcada pelo sentimento da ikebanista. Como um poema ou uma pintura tecida de flores, estes arranjos florais expressam tanto a beleza intrínseca das flores como a busca do belo nos nossos corações.
Para o japonês, a simetria é uma forma muito estreita, sem espaço para as ideias, onde se insere, por exemplo, um bouquet clássico barroco, em que a vista salta de flor em flor. Mas numa forma com espaços livres e assimétricos, a atenção do artista é chamada a seguir o movimento da dinâmica da vida e a beleza individual de cada flor. É isso que a ikebana nos oferece. Uma flor é a Primavera; uma folha caída encerra em si todo o Outono.

Por entre o pássaro e a borboleta
surge uma flor desmaiada:
céu de Outono
Bashô (1644-1694)

Matsuo Bashô, o maior poeta japonês, reflecte aqui o jogo de inconstância que encontramos na pintura Sumi-e, a tinta da China, onde plantas e flores são desenhadas com poucos e sugestivos traços. Cabe ao observador completar a imagem, transformando e aprofundando o objecto da sua contemplação. Bashô escreve num dos seus diários:
  • Estou só e escrevo para minha alegria.
Uma borboleta que esvoaça, ou uma brisa ligeira que sacode uma folha de bambu, pode ser o elemento que cala a solidão e reclama a alegria. Amado por inúmeras e sucessivas gerações, dentro e fora do seu país, Bashô é contemporâneo pela intemporalidade da sua obra.

Ah este caminho
que já ninguém percorre
a não ser o crepúsculo
Bashô

Este haiku é um poema tão breve que nos parece insignificante, mas tem, de facto, uma dimensão cósmica. Há um caminho que ninguém pisa, nem mesmo aquele que diz que ninguém por ele segue. É o eu que reconhece o caminho de ninguém. Sabe que essa é a única via possível para nos explicar a fatalidade do destino de que nos fala o haiku. Ao descobrirmos o quão pequenos somos diante da Natureza, aprendemos a esvaziar o ego para atingirmos a harmonia, aquilo a que os japoneses chamam coração universal. É uma virtude indispensável para a compreensão das manifestações artísticas. Será oportuno referir aqui que, até hoje, poucos ocidentais tiveram a coragem de aprofundar o complexo mundo espiritual da essência do budismo zen. Pois zen é algo que não pode ser definido por palavras. Como disse um velho mestre:
  • É apanhar a lua reflectida num límpido regato.
Os mais familiarizados com esta filosofia compreendem melhor o conceito da Natureza na poesia japonesa: imaginemos, por exemplo, uma pintura paisagística, onde a figura humana surge somente esboçada e perdida no vasto cenário, tal como uma pedra ou uma árvore. Apenas algumas pinceladas, descontraidamente aplicadas, bastam para sugerir um mundo rico de beleza e em harmonia com os espaços livres.


Neste sentido, a arte japonesa é sem moldura, ou seja, um quadro não é limitado por uma moldura nem física nem espiritualmente. É possível descobrir uma montanha numa simples pedra, ou vislumbrar o mar imenso numa pequena gota de água». In Lisa Flores, Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid B. Martins, colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN 972-699-785-2.

Cortesia de Nova Vega/JDACT