domingo, 20 de janeiro de 2013

A(s) História(s) que Almeida Faria Contou. Rosa M. Goulart. «Histórico, é, aliás, o próprio percurso que marca a tetralogia, em que cada livro constitui uma etapa de uma viagem pelo país, mas também pelo mundo, pelo exterior, mas também pelo interior de cada um»


jdact e cortesia de wikipedia

«Sem esquecermos o seu romance de estreia, Rumor Branco, o qual como que alheio a toda a polémica suscitada, firmou um lugar na Literatura Portuguesa do século XX, e não desapontou aqueles que, como Vergílio Ferreira, auguravam para o então jovem autor de 19 anos uma promissora carreira literária, é com A Paixão que Almeida Faria ganha o seu estatuto de romancista com maiúsculas. Romance que resiste ao tempo, ele constitui, sem dúvida, os alicerces do sólido edifício constituído pela célebre Tetralogia Lusitana:
  • A Paixão;
  • Cortes;
  • Lusitânia;
  • Cavaleiro Andante.
Nesta tetralogia empreende, Almeida Faria um percurso onde o individual adquire pleno valor através dos sentidos que projecta no social, mas em que este, por seu turno, não se resume à questão do imediato. As personagens que vivem o presente, individual e histórico, são modeladas por um passado que arrastam consigo, um passado histórico, não raro, mítico e, acima de tudo, cultural.
Trata-se, aliás, de uma cultura que irradia em várias direcções: é, por exemplo, a memória do sistema literário que Almeida Faria actualiza da melhor maneira:
  • sobretudo nas fecundas relações intertextuais que estabelece, que reclama também um tipo de leitor minimamente culto para as perceber;
  • é o diálogo com as outras artes, as artes plásticas, por exemplo;
  • é a moderna versão do género epistolar, cujo modelo o autor vai buscar ao romance epistolar do século XVIII;
  • é enfim, o retorno a uma espécie de discurso fundacional da cultura judaico-cristã para o trazer renovado ao século XX.
Começando por A Paixão, dir-se-á que este livro se lê em dois sentidos: trás no horizonte primeiro a histórica paixão de Jesus Cristo, a grande narrativa legitimadora do cristianismo. Traz, em imagem invertida, uma paixão sem aleluia nem domingo da Ressurreição, a paixão daqueles que incorporaram em si as amarguras e frustrações vividas no Portugal anterior à revolução dos escravos, mas, em última instância, a paixão do homem que se busca através dos sinais exteriores que o mundo lhe oferece ou lhe recusa.
Embora o narrador daquele romance, a fazer-nos acreditar que Almeida Faria não pretenderia que a moral da sua história se saldasse em pura negatividade, se mostre esperançado em que a simbologia do Cristo ressuscitado se estenda a todo o homem, há uma melancolia que atravessa subterraneamente esta Tetralogia Lusitana bem presente em João Carlos, certamente a personagem que melhor assume o desconcerto que no país se vive, talvez por ser ele o membro da família que mais abertamente se manifesta contra o status quo.
Não por acaso, logo desde o início se destacou a tendência estética dominante de Almeida Faria. Não também por acaso Rumor Branco se acolheu à sombra tutelar de Vergílio Ferrreira, o mestre que o despertaria para a literatura, como o próprio Almeida Faria já publicamente reconheceu. A feição existencial dos seus romances convida-nos a uma leitura que sonde esse mais além da história vivida pelas personagens ou da História de Portugal que nos marcou, seja na frustração, seja na alegria da renovação política ou da esperança revolucionária. Sendo este, porventura, o lado mais visível da sua escrita, ele não é, certamente, aquele que mais nos interpela. É, pelo contrário, nos espaços do interiormente vivido, do não-dito ou do sugerido, do que nos apela à memória da Literatura e da Cultura em geral que esta obra no seu conjunto mais nos toca.
Tal não quer dizer, bem pelo contrário, que a História seja secundarizada na obra em questão. Histórico, é, aliás, o próprio percurso que marca a tetralogia, em que cada livro constitui uma etapa de uma viagem pelo país, mas também pelo mundo, pelo exterior, mas também pelo interior de cada um. A forma epistolar adoptada para os dois últimos volumes, Lusitânia e Cavaleiro Andante, é bem um sinal dessa viagem por dentro de si, projectando-se para o outro, como que a recordar o que diria Vergílio Ferreira sobre a epistolografia, a saber, que ela é essa forma de diálogo que não anula inteiramente o monólogo». In Rosa Maria Goulart, A(s) História(s) que Almeida Faria Contou, Universidade dos Açores, Actas do Colóquio Internacional Literatura e História, Porto, 2004.

Cortesia de ACIL e História/JDACT