sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Tempo e Poesia. Eduardo Lourenço. Poética Mítica. «O Nada resume desmedidamente todas as formas do obscurecimento do nosso parentesco profundo com a Realidade. Só o Instante, tradução dessa intimidade com o Ser, detém, frágil mas decisivamente, esse Nada e a queda humana que o constitui»


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In Memoriam de A.D.A.

Esfinge ou a poesia
«Tudo se está fazendo. Se cruzarmos os braços, as coisas e as ideias voltam aos caos, e os fantasmas da necessidade e da morte adquirem novo alento pela nossa desistência. Era indecente quem só tivesse carregado a cruz uma só vez. O cristão sabe que deve levá-la todos os dias. A cada hora basta a sua pena, mas cada hora precisa duma dor nossa para se sentir acordada. A Esfinge não è um enigma resolvido nem a resolver nos séculos futuros. A Poesia não é uma árvore morta nem a fazer florir nas colinas de amanhã. É a resolução que damos à história, aos encontros, às promessas, de cada vez que consentimos descer das palavras à dificuldade dos actos. Ou subimos dos actos à corola mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da morte.
Como na hora em que concebemos a Esfinge para nos tocarmos melhor, continuamos sendo aqueles que procuram danadamente uma autêntica face de homem, uma existência em busca duma essência. Ou uma essência descontente de si mesma buscando-se entre possibilidades múltiplas de existir. Por isso sabemos hoje que não teremos uma face diferente daquilo que fizermos. Mas fazer de novo é continuar a criação e criar é ser poeta. O que significa finalmente não ter outro senão o que a Poesia nos modelar.

Tempo e poesia
Criação quer dizer saudade… In Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro.
O paradoxo do Instante não é o de acabar quando surge. Esse dever o impomos nós ao banal instante, talhado na peça imaginariamente substancial do Tempo. O paradoxo do Instante é o de nunca ter principiado e não poder ter fim. Ninguém verá a cabeça nem a cauda de tal monstro. Nascemos a bordo e a caminho, como Pascal, seu primeiro grande viajante sem bagagem, claramente o soube. A forma do barco onde vamos sem a ver é o mesmo Instante. Nele deslizamos, estranhamente parados, não para a Eternidade, mas na Eternidade. Atrás deixamos a espuma do Tempo. Contudo, o Instante nem é eternidade nem tempo, miragens da travessia quando ela é um deserto ou mar absoluto. Do porto onde não chegaremos formamos a Eternidade, do que não deixámos, o Tempo. Ambos são sósias do Nada, formas gémeas e inversas de perder o Instante. O erro será imaginar esse Nada como uma ficção. A nossa permanente alienação basta para lhe dar o peso de que necessita para que o confundamos com a Realidade. O Nada resume desmedidamente todas as formas do obscurecimento do nosso parentesco profundo com a Realidade. Só o Instante, tradução dessa intimidade com o Ser, detém, frágil mas decisivamente, esse Nada e a queda humana que o constitui.
O Instante toca-nos, ou somo-lo, a um tempo com uma leveza de sonho e um excesso que nos desfaz. Quem cairá na tentação de figurar o infigurável? Sá-Carneiro diria gloriosamente dele que é aquela manhã tão forte que nos anoitece. A sua realidade é a de um só dia, o dia intérmino da presença do homem a si mesmo, transparente e duro como diamante, cujo impensável nome é Sempre. Com visionária limpidez assim o anteviu Teixeira de Pascoaes, ao baptizar um dos seus livros com o título luminoso. Em sua vivida e vivente imobilidade se resolve, sem se resolver de todo, o mistério da nossa situação. Nele se unem, enfim, os mortais dilemas que o Tempo, como ser real, sempre apresentou a todos os homens, fascinados por uma esfinge que é a sua própria sombra». In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003, ISBN-972-662-907-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT