sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «Os documentos escritos relativos a Angola não podem deixar de ser estudados e interrogados, fornecendo o olhar exterior sobre os homens, os espaços, os sistemas de organização social criados pelos angolanos. Os historiadores organizam os seus próprios corpus documentais para alcançar objectivos»

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Artifícios da História.
Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses
«A necessidade de proceder à recomposição da História de Angola, operação que parece ser indispensável à própria estabilização da sociedade angolana de hoje, é consequência de uma multiplicação de investigações e de estudos de natureza histórica, produzidos nos últimos vinte anos por africanos, americanos e europeus. Resulta também da consciência cada vez mais aguda da importância central da pesquisa pluri e interdisciplinar, do recurso a todas as fontes e metodologias aperfeiçoadas no campo das ciências sociais e da necessidade de desenvolver a crítica, a reflexão e o confronto de ideias.
A construção da História, questão que, sobretudo nos últimos dois séculos, gerou leituras, interpretações, escolas, correntes, polémicas apaixonadas, suscita hoje uma vasta constelação de problemas que se situa no ponto de convergência de duas reflexões fundamentais. A primeira ocupa-se da produção do saber histórico, centrada em torno de uma abordagem simultaneamente conceptual e cronológica, isto é, epistemológica e historiográfica. A segunda define-se como uma reflexão consagrada ao ensino da História organizado em cursos, manuais de ensino, respeitando instruções oficiais elaboradas a partir das próprias experiências dos historiadores actuais. Por outras palavras:
  • como se constrói a História, com que instrumentos conceptuais, com que documentos, seleccionados como? Como se ensina a História, a quem, quando, onde, com que objectivos?
A tarefa do historiador obriga-o a uma tensão permanente para respeitar as exigências da verdade, tendo consciência de que a História que escreve ou ensina é uma operação intelectual complexa, sujeita a revisões constantes, que tanto dependem dos documentos como dos pontos de vista utilizados.
Fontes, conceitos e métodos privilegiados pelo historiador, factos históricos, tempos da História: a História é uma construção do historiador, dependente da fidelidade às fontes e do rigor das interpretações. A partir das marcas do passado deixadas pelos homens, o historiador organiza o seu corpus documental, selecciona os seus instrumentos conceptuais, constrói os factos e inscreve-os em determinadas temporalidades. A realidade do passado não é um dado que o historiador possa encontrar, reconstituir e transcrever. Semelhante realidade não pode deixar de ser interrogada e organizada. O historiador faz as suas escolhas e constrói a História.
A época em que os vestígios do passado utilizados pelo historiador eram apenas os documentos escritos e arqueológicos deu lugar a um tempo actual em que se verifica um alargamento do campo dos documentos. Há já várias décadas, Lucien Febvre escrevia que tudo o que o homem toca, produz, diz, pensa, cria… Pode e deve ser considerado fonte histórica. Todavia estas fontes que o historiador pode e deve utilizar sem discriminações não são objectos naturais, com excepção talvez dos resíduos paleontológicos descobertos pelos arqueólogos. O mesmo é dizer, que em História não existem fontes em bruto. Testemunhos orais, memórias orais e escritas, textos jurídicos, sermões, correspondências, relatos escritos e orais, monumentos, produções plásticas, fotografias, instrumentos do trabalho dos homens e objectos do quotidiano destinados aos mais variados usos, desde a alimentação ao religioso, apareceram e foram utilizados para satisfazer necessidades, práticas ou imaginárias, respondendo a intenções, a vontades, a escolhas. Ou seja, as fontes construídas pelos homens do passado no quadro dos seus sistemas culturais são identificadas, recuperadas e reconstruídas pelos historiadores que as seleccionam, analisam, interrogam em função dos seus objectivos, das suas hipóteses de trabalho, assim como do conhecimento que se acumula e se exterioriza.


Os documentos escritos relativos a Angola não podem deixar de ser estudados e interrogados tendo em conta estas linhas gerais de reflexão, produzidos por autores na sua grande maioria exteriores às diferentes realidades angolanas, estes documentos não só são reveladores das condições em que foram elaborados, fornecendo o olhar exterior sobre os homens, os espaços, os sistemas de organização social criados pelos angolanos, mas constituem sobretudo um excelente observatório das formas como os historiadores os utilizaram, organizando os seus próprios corpus documentais para alcançar objectivos e responder a interrogações suscitadas por contextos ideológicos, mentais, sociais e políticos diversos». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT