quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Sábio Imortal. Sócrates. Miguel Betanzos. «Todos pareciam extasiados ao observar aquele velho e rude mestre de filosofia que não se parecia nada com os outros e pensavam que talvez alguma aura divina, algum influxo olímpico devia abrigar-se no seu espírito»

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«Não te preocupes, eu aviso-o, e depois empreendeu o caminho novamente em direcção a casa de Ágaton, enquanto Sócrates ficava ali, sentado, imóvel, em atitude contemplativa, a ver como o pequeno Aristodemo era tragado pela imensidão da noite. - Já sabes como ele é - insistiu Aristodemo perante Ágaton. - Mas não te preocupes, de certeza que estará aqui em breve. Sócrates não perderia um banquete nem por todo o ouro do mundo.
Deitados em mantas e almofadas, esfomeados, excitados pelos gostosos manjares que o dono da casa oferecia, os convidados foram recebidos com o melhor da cozinha ateniense durante o decorrer de uma noite infindável e abundante em risos, cantos, celebrações e burburinho. Durante quase três horas desfilaram carnes avermelhadas e estaladiças, o delicioso aroma dos molhos e o vinho, sobretudo o vinho, em largas e coloridas vasilhas que iam e vinham com alegre despreocupação. E já o banquete chegava ao fim, no meio de barrigas ostentosas, faces coradas, rostos encharcados em suor, quando a figura do velho Sócrates espreitou sob o marco da porta, com o sorriso afável, o braço levantado, a expressão ainda vagamente absorta.
 - Por todos os deuses, velho amigo! - rugiu Ágaton assombrado. - Já era tempo de chegares! - E baixando o tom de voz, acrescentou: - Mas vem, senta-te ao pé de mim e deixa-me desfrutar da tua companhia.
O velho sorriu mais uma vez, comprazido pelo convite, e foi sentar-se junto ao dono da casa enquanto um silêncio inquietante seguia os seus passos. Todos o observavam intrigados, expectantes, demasiado curiosos em saberem que estranhos e profundos pensamentos teriam retardado a sua chegada ao banquete. Olhavam o seu rosto um tanto enigmático e distraído, talvez ainda enredado em alguma abstracção confusa; seguiam-lhe os passos à espera que se decidisse a falar disso perante a assistência que aguardava ansiosamente os seus segredos, mas o velho mestre não se deu por convencido e continuou a andar até se sentar junto de Ágaton.
Sim, por vezes actuava assim, recusando-se a desvendar as suas ideias aos outros; talvez as julgasse transcendentes, demasiado simples e inúteis, fruto de uma inspiração efémera que acabaria por se diluir nos meandros do seu espírito e que talvez merecesse ser revista, examinada, meditada ainda mais profundamente antes de a dar a conhecer. O caso é que não abriu a boca e sentou-se junto ao dono da casa acomodando-se entre umas almofadas. Com o canto do olho viu que todos o observavam com apreensão e expectativa, mas mesmo assim permaneceu calado e metido consigo, enquanto as suas mãos agarravam uma suculenta perna de cordeiro, recém-saída do forno e a escorrer sangue, e dedicou-se a apreciar os músicos que animavam o banquete com liras e flautas.
Olhava os músicos e ele próprio era olhado, olhado pelos outros convidados que não tiravam os olhos daquele homem estranho e singular, de pétrea armação óssea, de crânio redondo e firme como o de um touro. Na verdade, o seu rosto selvagem e animalesco chamava a atenção, aquelas mandíbulas de cão que agora mastigavam com gosto, que devoravam os nacos de carne rugosa, fumegante, e cujo suco lhe escorria por entre as barbas. Todos viam o seu olhar um tanto insolente e profundo, aqueles olhos escuros e fugidios, reveladores de algum mistério insondável que parecia incompreensível ao comum dos mortais. Olhavam para a sua figura grotesca e fascinante e contudo tão sólida, tão indelével que se assemelhava à de um deus, talvez ao aleijado e horrível Hefesto, que habitava as profundezas encobrindo a sua fealdade, as suas feições repulsivas e a espantosa mutilação que sofreu na perna. Todos pareciam extasiados ao observar aquele velho e rude mestre de filosofia que não se parecia nada com os outros e pensavam que talvez alguma aura divina, algum influxo olímpico devia abrigar-se no seu espírito.
E então foi tempo de libações e oferendas. Quando terminou o jantar, e quando o próprio Sócrates já devorara a sua perna de cordeiro, o dono da casa agarrou num copo de vinho e bebeu em honra dos deuses, bebeu até ao fim e com solenidade ritual, acompanhado pelos outros convivas, que, quando esvaziaram o copo, entoaram um cântico guerreiro em honra do deus Apolo. Agora sim, era o momento para a embriaguez luxuriosa, a imponderação, o combate orgíaco entre os corpos, era tempo da obscenidade exuberante com que costumavam acabar os banquetes.
Mas desta vez nada disso aconteceu: Ágaton decidiu que não eram os corpos a falarem mas as mentes, que não brilhasse o erotismo, o voluptuoso erotismo, mas o refinado engenho do intelecto. Oh sim! Desta vez não haveria lugar para os deleites amorosos, não haveria lugar para Eros, para Afrodite, para o tormentoso Príapo, não haveria lugar para acender as paixões carnais mas para animar os prazeres do espírito». In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN 972-8605-93-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT