quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Norte de Portugal ente os séculos VIII e X. Balanço e perspectivas de investigação. Luís Fontes. «Os bons edifícios da Reconquista, na área portuguesa, estão entre a arte cordovesa, emiral e califal, e a arquitectura asturiana, e ao lado das tão moçárabes realizações leonesas. Elas mostram características próprias, expressando esse tempo e essa cultura»

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[…] Esse período como um prelúdio da história de formação de Portugal, ao passo que outros preferem considerá-lo como uma fase da evolução histórica do reino asturiano e leonês, procurando-se compreender os diversos ritmos e tendências de evolução da sociedade alto medieval. Por outro lado, embora alguns historiadores reconhecessem na arqueologia uma área de estudo cujo desenvolvimento poderia contribuir para um melhor conhecimento da Alta Idade Média, a verdade é que os estudos arqueológicos só se vieram a concretizar a partir da década de 80 do século XX, acompanhando, aliás, a tardia afirmação da Arqueologia Medieval no quadro do ensino e da investigação arqueológica portuguesa. Os primeiros contributos significativos, ainda que limitados por um certo empirismo metodológico, devem-se a Carlos Alberto Ferreira Almeida, com os seus estudos pioneiros sobre a viação, castelologia e arquitecturas medievais do Entre Douro-e-Minho. Nesta última matéria defendeu, a pesar da sublinhada escassez de dados, que “(…) As construções religiosas da época da Reconquista (…) mostram-nos uma arquitectura de multiplicados e pequenos espaços, de uma legibilidade interna muito limitada, isto é, com uma ordenação bastante estanque. E a silhueta exterior destes edifícios assim o reflecte. Esta é marcada por diferentes volumes, notoriamente, escalonados até ao centro ou até à torre-cruzeira, quando esta existe. (…) Os bons edifícios da Reconquista, na área portuguesa, estão entre a arte cordovesa, emiral e califal, e a arquitectura asturiana, e ao lado das tão moçárabes realizações leonesas. Elas mostram características próprias, expressando esse tempo e essa cultura (…)”.
Mário Jorge Barroca aprofundou as linhas de investigação abertas por Ferreira de Almeida, creditando-se-lhe os primeiros inventários arqueológicos analíticos das necrópoles, de elementos arquitectónicos avulso e da epigrafia altomedievais do entre Douro-e-Minho, os quais lhe permitiram reafirmar os séculos IX-XI como um período socialmente dinâmico, caracterizando-se a “arte portuguesa pré-nacional” por revelar “(…) uma estética original, na mayoría dos casos afastada dos cânones asturianos ou moçárabes puros, mas não deixando de ser influenciada por estes e pelos que se ia fazendo na área galega. São sobretodo notórias as referências asturianas e compostelanas, filtradas e assimiladas num gosto próprio. (…)”.
Nas décadas finais da última centúria, iniciaram-se também estudos de produções cerâmicas provenientes de contextos arqueológicos com estratigrafia bem estabelecida, proporcionada pelas escavações no casco urbano da cidade de Braga e no sítio de Dume. Alexandra Gaspar, a arqueóloga que melhor estudou esta matéria, registou para este período a predominância das produções locais e uma significativa redução de fabricos importados, que não se imitam, a par de uma menor variedade de formas, com predomínio das formas fechadas, acentuando-se nas cronologias mais recentes as cozeduras em ambiente redutor.
Mas é com Manuel Luís Real que, de modo sistemático, o conhecimento deste período histórico se amplia e renova, graças aos seus persistentes estudos de história da arte e de arqueologia altomedievais, oferecendo-nos nos últimos anos as mais informadas, estimulantes e historicamente contextualizadas sínteses sobre a evolução da arquitectura no actual território português entre os séculos VI e XI. Sustentado por uma abordagem metodologicamente actualizada, em que releva a manipulação de dados primários recolhidos nas múltiplas escavações arqueológicas que, directa ou indirectamente, acompanhou, a par da recolha de paralelos no actual território português, no sul peninsular e na bacia mediterrânica, Manuel Real cruza dados de natureza diversa (arqueológicos, documentais, toponímicos, estilísticos), que lhe permitem propor uma interpretação coerente das características essenciais da arte e da cultura dos séculos IX-XI. Porque elucidativo, permita-se-nos transcrever aqui o resumo do seu contributo apresentado no terceiro simpósio internacional “Visigodos y Omeyas”:
  • “As esculturas do período suevo-visigodo evidenciam uma natural continuidade em relação ao período romano. No entanto, demonstram também tendências para a dissolução dos modelos nos quais se inspiram. Com a Reconquista emergem novas formas artísticas, onde sobressaem as influências galaico-asturianas, mais do que leonesas. A arte erudita do “grupo portucalense” irá caracterizar-se por um progressivo retorno ao classicismo, matizado pela introdução de formas de origem moçárabe. Neste processo, vão ter um papel preponderante as cortes condais de Viseu e Coimbra. A importação, para o Entre Douro e Minho, de peças de escultura em calcário, ter-se-á seguido à nomeação de Hermenegildo Gonçalves e Mumadona para o governo do condado de Portucale. A íntima relação que estes mantinham com a corte de Ramiro II, de Leon, explicará ainda algumas afinidades entre o “grupo portucalense” e certas manifestações artísticas, dispersas pela Galiza, Astúrias e, eventualmente, o baixo Leon”.
Portanto, não só se deve abandonar a ideia feita que após 711 se deixou de construir edifícios, como se deve reconhecer a existência de renovação arquitectónica, com manifestação de influências diversas, que se entrecruzam, inclusivamente oriundas do mediterrâneo oriental. Essa renovação está expressa nas diversas tendências regionais que se detectam nos elementos arquitectónicos atribuídos a este período, distinguindo-se uma arquitectura “moçárabe” com origem em centros urbanos meridionais, como Mérida, Málaga, Lisboa ou Coimbra, uma arquitectura asturiana desenvolvida a partir da capital das Astúrias, Oviedo, e uma arquitectura condal galaico-portucalense, que emerge em torno dos principais núcleos de povoamento do Noroeste, isolando-se no entre Douro-e-Minho o foco de Braga, num eixo que se estende de Guimarães a Ponte de Lima». In Luís Fontes, O Norte de Portugal ente os séculos VIII e X. Balanço e Perspectivas de Investigação, Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, Braga, 2010.

Cortesia da U. do Minho/JDACT