segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O Deserto Habitado. Júlio Conrado. Leituras. «‘Entro’, como assim? No circuito da luta, beijo o pó das amoras, cresço para a névoa roxa. Sei que não resulta, mas finjo entrar, dando-te a entender que ingresso de facto nesse capitoso universo marcado pela juventude do teu desejo»

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«Amo-te, Magda, e sigo nu, por ti arranho o sexo nas silvas, rojo nos espinhos o corpo envergonhado, sinto-os fundo na carne, fazem, a seu modo, justiça, a Cidade Nova não se consterna nem se prostra ao ingresso dos aspirantes a Homem. Por ti me rasgo nos arbustos, até ficar reduzido a uma ridícula bosta de sangue. Caminho aos sacões. Sei que a Cidade Nova se agachará de gozo, dobrada sobre o ventre, mãos nos testículos e respiração suspensa, aberta numa monstruosa gargalhada de nojo. Não estenderá um dedo para me dar apoio se eu vacilar. Do que a Cidade Nova precisa é de braços que a reconstruam, dirão, não é de balões de soro, mas de murros, a necessidade, querem matadouros de carne segura, vesga, infantil, que reduza a humanidade aos lábios grossos duma vagina por perfurar e a perfure, a liberte do gesso endémico da hereditariedade. Aceito, vês, a responsabilidade dos passos preliminares. Comecei, portanto, diligente e de boa-fé como um escuteiro ajuizado, a experimentar na pele e na alma as arranhadelas das silvas sobre as quais me rebolo despido. Aqui para nós, Magda, as silvas são para os donos da Cidade Nova meros crivos experimentais. Um sinal amarelo, indicativo de prudência, relato, informe, currículo, anos de tortura e de cadeia. Sabes que não reúno as condições, mas não hesitaste em me submeter às provas. Não entrarei nela, cidade, deixa-te de peneiras. Mas acompanhar-te-ei até ao fim, Magda. Paradoxalmente, não te perderei de vista, pois não estás tu sentada a meu lado neste 'tribunal? E até receberás dos meus lábios os cravos que hão-de suavizar-te os últimos momentos.
‘Entro’, como assim? No circuito da luta, beijo o pó das amoras, cresço para a névoa roxa. Sei que não resulta, mas finjo entrar, dando-te a entender que ingresso de facto nesse capitoso universo marcado pela juventude do teu desejo. Prefiro-te, de resto, Magda, nua pelas dunas, em correrias loucas, ou então pondo termo frugalmente a essa magnífica trégua da anunciação do amor no choque dos nossos corpos admirados e súbitos, nossos derradeiros tecidos espraiados num luar de fúria ou de curiosidade enfim resolvida. Como se a viva cumplicidade sensual partilhasse da descoberta de outros padrões de conhecimento ou uma nova sabedoria nos mostrasse a verdade maior de cada instante de futuro. Prefiro rever-te de silhueta esbatida na fosca moldura à beira-mar, com luzes de barcos em círculo lá longe, remos e proas minúsculas, bóias suspensas, na ruína dos seus austeros e diluídos rostos nocturnos. Entre sombras de maré baixa, fantasmas imaginados, âncoras e apetrechos de pesca, nos arrependíamos de mais cedo não nos termos dado, fazendo com nossas mãos a alegria, com nossas bocas o cio, com nossos sexos o júbilo, com nosso entusiasmo o rito, com nossos joelhos, ombros, seios ou fanes a melodia do movimento, com nossos cérebros o poema, com nosso vulcão solto uma espécie de hino remoto, livre, rouco, total. Foi bonito de ver-se, Magda, como naqueles minutos plenos nos compreendíamos, certos de estarmos a cerzir rasgões milenários, donde naturalmente nos vinha a loquacidade do entendimento, a flor do riso, cântico e sémen da claridade. Fomos capazes de estabelecer uma bem sólida ponte sobre os destroços das nossas angústias tão contraditoriamente situadas, dos nossos degredos tão distantes e tão próximos. Chegou a ser belo! Mais tarde, instaurada a era da luz, músculos lassos, consentíamos na troca dos troféus. Eram gestos simples e palavras importantes. Enquanto deixavas escapar de entre os dedos para o meu tronco suado um delgado corrimento de areia, ias sondando as minhas intenções e a minha audácia, dizendo que ‘era preciso as pessoas fazerem coisas’, ao que eu respondia vagamente ‘Sim, tens toda a razão, meu amor’, suspeitando já que pessoas, na circunstância, eram ‘eu’ e ‘tu’ e me propunhas estranhos compromissos, doridas tarefas. Escutava calmamente o que dizias. Não dava respostas nem fazia comentários.
Beijava-te os mamilos. Retraías-te, parecias contrariada, acabavas a rir. Eis como te desviava da conversa incómoda, a que eu invariavelmente fugia. Que resta em mim da nossa esplêndida ligação? Talvez este ódio macio, verdadeiro gume oculto por detrás dos sorrisos opacos, dos silêncios ambíguos, face à recusa duma página em branco, onde os signos se acumularão em desordem, antes de a máquina os arrumar muito serenos e pomposos uns ao rés dos outro, como se tivessem nascido já assim perfilados, rectos, perfeitos. Contudo: Como passa, Sra Doutora? - E não se segue um beija-mão porque não calha, seria de péssimo gosto o intelectual progressista abandonar-se com tanto descaro aos maneirismos das pessoas bem da Vila.
A folha branca não deixaria, não deixará, de acolher, em todo o caso, o registo da exemplaridade, o horror aos vícios, aos salamaleques dos seres organizados, embora fosse com elas, com as pessoas bem, que eu há três meses emparceirava nas digressões pelos montes a beberricar velhos néctares». In Júlio Conrado, O Deserto Habitado, Prelo Editora, Lisboa, *06542*,1974.

Cortesia de Prelo/JDACT