terça-feira, 11 de dezembro de 2012

FCG. Damião de Góis. Elisabeth Feist Hirsch. «Góis escreveu a João III que Luís teria boas probabilidades de vir a ser rei da Polónia, ‘a monarquia polaca era electiva’, se se combinasse o casamento. Contudo, por mais útil que a união pudesse vir a ser para Portugal, não foi aprovada por Sigismundo»


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«Pretendia até que Portugal tinha sido escolhido para cumprir a frase bíblica: “Por toda a terra caminha o seu eco, até aos confins do mundo a sua palavra”. Góis relembrava a Giovio que as conquistas além-mar cobriam de glória, não apenas Portugal, mas toda a comunidade cristã, e mereciam o apoio de todas as nações. Que melhor apoio podia haver, exclamava Góis, do que a disposição de pagar o preço pedido pelas especiarias?
É claro que havia muitas razões para que aventureiros se lançassem à conquista, razões essas que incluíam a ambição, associada a uma grande crueldade, assim como simples curiosidade de religião, e um espírito genuíno de pesquisa; essa limitação dos objectivos a razões essencialmente religiosas diz-nos mais sobre Góis do que sobre os factos em si. Escrevendo com fervor patriótico, preferia atribuir os motivos mais elevados às descobertas gloriosas e ao subsequente poderio de Portugal.
João III não podia desejar melhor porta-voz. E, pois que Góis servia tão bem os interesses portugueses, o rei, após cinco anos de serviço em Antuérpia e nas terras circunvizinhas, mandou-o em missões especiais em 1528, 1529 e 1531. A primeira missão de Góis levou-o a Inglaterra numa altura de extrema tensão, quando os planos de divórcio de Henrique VIII eram causa de grande angústia e alarme entre os católicos. O rei português tinha sido sempre um defensor da Igreja Católica mas não desejava fazer perigar a aliança entre o seu país e a Inglaterra, sobretudo por causa da importância do Canal da Mancha para o tráfego marítimo português para Antuérpia e para outros portos europeus. Provavelmente queria que Góis garantisse ao rei inglês as intenções pacíficas de Portugal, a fim de desfazer os boatos que se tinham espalhado, de que o país iria atacar a Inglaterra por mar.

NOTA: Infelizmente não se pode provar nada ao certo sobre as conversações de Góis na Inglaterra. O rei português desaprovava o divórcio de Henrique VIII e é possível que Góis tivesse tratado do assunto particularmente.

A incumbência de Góis deve ter sido difícil, tranquilizar sem ofender os católicos. A única referência que lhe fez foi para prestar tributo a seu amigo John Wallop, que lhe fora muito útil a respeito das [suas] negociações com a Inglaterra. Quando Góis travou conhecimento com Wallop em Portugal, o inglês defendia a causa católica e tinha ido lutar em África lado a lado com os soldados portugueses; mas agora Wallop era íntimo colaborador de Thomas Cromwell, que iria em breve substituir Thomas Wolsey nas boas graças de Henrique VIII. Góis, contudo, não parece ter achado extraordinária essa mudança de lealdades da parte de Wallop.
É possível que Góis tenha conhecido Thomas More em Inglaterra, visto que esse católico devoto e tolerante ainda desempenhava aí um papel de relevo; além disso, esse piedoso humanista tinha sido hóspede frequente da Casa da Índia em Antuérpia, poucos anos antes da ida de Góis para a Flandres. A reacção de Góis à notícia da execução de More e de John Fisher, anos mais tarde, sugere que ele conhecia More pessoalmente. Se assim era, devia ter sofrido ao saber que o seu outro amigo, Wallop, tinha defendido oficialmente, na qualidade de Embaixador em França, a decisão real de mandar executar os dois membros da Igrej. João, filho de Thomas More, movido fosse por algum elo entre More e Góis, fosse simplesmente pela curiosidade que o pai sentia pelos Descobrimentos dos Portugueses, traduziu para inglês o primeiro opúsculo latino de Gois sobre a missão do enviado etíope Mateus a Portugal. A introdução de John fazia eco da tolerância religiosa do pai e de Góis, que advogavam uma fé católica não dogmática.

NOTA: Sobre a tradução do opúsculo de Góis por John More, gostaria de citar alguns passos da introdução de More porque as suas opiniões religiosas eram extraordinariamente semelhantes às de Góis. Rogers: "Este império de Preste João tem a reputação de ser tão poderoso como todas as restantes nações (se não o fôr mais) que estão agora cristianizadas, excepto as terras recentemente descobertas que se tornaram cristãs nos últimos anos. E portanto vós, bons povos cristãos, podeis regozijar-vos grandemente, e é de razão que o façais [...]

Embora Góis encontrasse uma certa efervescência religiosa em muitos dos países que visitou, a situação não era sempre tão confusa como tinha sido em Inglaterra. O rei da Polónia em 1529, Sigismundo, que estava profundamente ligado a religião católica, tinha grandes problemas com os estudantes polacos, muitos dos quais procuravam a sua inspiração em Wittenberg.

NOTA: Oliveira Marques, que estudou em pormenor as rotas da viagem de Góis, deixou em aberto o problema da partida de Góis por mar ou por terra, ao sair de Portugal. Depois de cumprida a missão, Góis regressou via Danzig; parece-nos muito provável que tenha voltado de barco.

Também vários nobres, como Joannes Tarnowski, que Góis tinha conhecido em Portugal e que o festejou na Polónia, eram influenciados pelos protestantes. Contudo, a missão de Góis nesse país consistia em discutir a possibilidade dum laço dinástico entre a Polónia e Portugal, e não envolvia nem questões religiosas nem questões essencialmente políticas. Os interesses económicos de João III no Oriente tornavam altamente desejável o casamento entre o seu irmão Luís e Hedwig, filha do primeiro casamento de Sigismundo. Góis, convidado ao castelo da princesa, pôde ver por si próprio que a proposta noiva era discreta e bem-parecida. Tinha a certeza de que seria bem-sucedido na sua missão. Em conversações com vários cidadãos polacos tinha vindo a saber que a segunda mulher de Sigismundo, Bona, de origem italiana,
não era benquista, e que o único filho que ela tinha do rei era uma figura impopular. Góis escreveu a João III que Luís teria boas probabilidades de vir a ser rei da Polónia, a monarquia polaca era electiva, se se combinasse o casamento. Contudo, por mais útil que a união pudesse vir a ser para Portugal, não foi aprovada por Sigismundo. Góis voltou à Polónia em 1531, mas uma segunda tentativa para unir os dois países por um laço dinástico também fracassou». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT