quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Para a História da Cultura em Portugal. António José Saraiva. A Evolução do Teatro de Garrett. «… uma nova classe de espectadores, a tentativa, já fora de tempo, para reconstituir uma corte com elementos de uma fidalguia decaída e de um clero inculto, a influência de uma educação cujo principal objectivo era destruir a personalidade…»


jdact e cortesia de wikipedia

«Esquecem que o grande escritor é aquele que o público salvou do esquecimento; que se um escritor chega a ser grande não é só porque o quis, mas porque um público o aceitou. Enquanto não se fizer, paralelamente à história do escritor, uma história do público, não teremos uma verdadeira história da literatura. A história da literatura é a história daquilo que o público lê ou leu. Se conhecêssemos a história do público, deixaríamos de nos preocupar com muitos pseudoproblemas que hoje roubam aos historiadores literários um tempo e esforço mal empregados. Explicaríamos talvez a estranha configuração da história do teatro português. Resigno-me a propor à vossa consideração uma simples hipótese. Notai que a primeira grande época do teatro europeu moderno corresponde a certas modificações da estrutura da sociedade europeia. Racine, Corneille, Rotrou, Molière, surgem, como por encanto, quase na mesma época, a época de Richelieu e Luís XIV. Não há aqui uma mera coincidência; como não é uma mera coincidência o florescimento do teatro inglês na época de Isabel ou o do teatro espanhol na época de Filipe II. Em todos estes países correspondem ao florescimento do teatro a centralização monárquica, o desenvolvimento da burguesia, a transformação da nobreza, de guerreira que era, em cortesã. Que relação há entre estas duas séries de factos?
Pela afluência dos fidalgos provincianos cujos castelos são arrasados e dos burgueses que ascendem a funções importantes na burocracia e adquirem títulos de nobreza, a corte converte-se num considerável centro populacional formado por indivíduos selectos e capazes de constituírem o público próprio para uma produção teatral de alto nível. Será preciso que as pequenas cortes senhoriais sejam sacrificadas à grande corte de Paris e que, à volta do grande rei, se aloje uma multidão de áulicos e burocratas para que surja o esplendor do teatro francês do século XVII; e será preciso que a corte seja varrida pela Revolução, a aristocracia aniquilada ou desterrada, que o público se torne uma vasta massa dispersa, para que o nível da produção teatral, desça com o advento do romantismo. Isto, que é verdadeiro para a literatura francesa, inglesa ou espanhola, por que o não será também para a literatura portuguesa?
A corte de Manuel I não é ainda precisamente a corte de Luís XIV, mas vai a caminho de o ser. Os fidalgos que pretendem um lugar no grande banquete que é a pilhagem do Oriente dependem inteiramente da benignidade do rei e concentram-se na corte à espera de vez; a burguesia apodera-se da magistratura, intervém na máquina burocrática, administra a Casa da Índia, fornece a classe dos letrados. A corte é um forte centro de atracção: Todos del-Rei! Todos del-Rei!, grita Gil Vicente, que era, aliás, um dos de el-rei. Assim se forma um público de fidalgos ociosos e burgueses letrados ao qual se dirigem os autos vicentinos.
Mas em Portugal, ao contrário do que sucede em França, este movimento é abruptamente interrompido. Todo um processo que culmina com a perda da independência e, portanto, a queda de Lisboa como capital régia, dizima o público cortesão. E o teatro, sem corte, acolhe-se nos pátios, vive de um público de acaso e inculto. A arrastada continuação desta história, assumptuosas mágicas e alegorias com que os jesuítas procuraram fazer esquecer o teatro que eles tinham ajudado a destruir, a voga da ópera italiana na corte dissoluta e beata de João V, o começo do Renascimento, no século XVIII, com António José Silva, que a Inquisição (maldita) queimou, com Manuel de Figueiredo, Garção e Quita, mostrar-nos-iam a lenta ascensão de um público disperso, a criação de uma nova classe de espectadores, a tentativa, já fora de tempo, para reconstituir uma corte com elementos de uma fidalguia decaída e de um clero inculto, a influência de uma educação cujo principal objectivo era destruir a personalidade». In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, A Evolução do Teatro de Garrett, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-460-6.

Cortesia de Gradiva/JDACT