segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Leituras. Os Meus Amores Contos e Baladas. Trindade Coelho. «Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços. -Por signal que nem rez se vendeu!--lembrou o Gonçalo. -Por signal!--disse com pena a Rosaria. Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava»

Cortesia de wikipedia

Nota: De acordo com o original

«Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rustica. No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:
--Ehlà, Gonçalo, és? O pastor desatou a rir.
--Uhlá, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona! E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
--Não te esqueceu a moda, rapaz!
--Isso esquece ella!... Ouviste, Rosaria?--Se outra fosse que m’a tivesse ensinado...
N'este meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou:
--Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?
--Vem tu d'ahi. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Han?
--Basta!
E dando o signal da partida, o Gonçalo pôz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte moirisca, toda severa de construcção nos seus tres arcos lançados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas.
A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar de maiores desgraças, naufragios no rio, e então maus encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animaes. D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.
--Ora viva a Rosaria!--disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.
--Bons dias, Gonçalo; então que ventos?
Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços.
--Por signal que nem rez se vendeu!--lembrou o Gonçalo. --Por signal!--disse com pena a Rosaria. Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. «Vêl-a agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle...»
--Mas se eu estive tão doente!--volveu triste a Rosaria.
E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou:
--Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manhã até ao escurecer... Uma assim!
E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, «tal e qual».
--Assim te Deus salve, ó Rosaria?--atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga. --Assim; pois que duvida?--tornou-lhe confiada a Rosaria.
--Não!--disse agastado o Gonçalo.--Não has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito. --Pois assim me Deus salve...
--Como é verdade...--Diz tudo, Rosaria!--supplicava o pastor.
-Sim, volveu-lhe paciente a companheira,--como é verdade que sonhava que nos encontravamos--concluiu por fim, muito risonha. E sem disfarçar o jubilo, prestes o Gonçalo a certificou de que também não a esquecera. ‘Tanto é que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado’.
--Lembras-te?
A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:
--Sahem d'aqui sem falhar uma.--E resoluto:--Vá feito, Rosaria, pede por bocca!
A Rosaria pediu então a Pastorinha.
--Eu é da que mais gosto,--explicou.--É a mais linda. --E é!--concordou o Gonçalo.--Ora escuta lá. E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra:

Onde vás, ó Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...

--Sabes essa! É mesmo assim!--disse-lhe a Rosaria a rir-se. --É como vês!--affirmou contente o Gonçalo. Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem.
--Olha as ovelhas juntas!--notou o Gonçalo. --Tambem nós nos quedámos juntos,--volveu-lhe a pequena, sorrindo.—As pobres dão-se bem, são amigas...--continuou com jubilo. --E nós tambem, ora tambem, Rosaria?
--Tambem--respondeu afoita a pastora.
E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de P. Gutenberg/JDACT