domingo, 18 de novembro de 2012

Há dias assim… Poesia (responsável por universalidade…). Ruy Belo. «A poesia caminhava entre o peso da superfície ocasional do mundo e devaneios de sentido onde o real confrontado se trespassava de mais que real. A sua poesia é o lugar do mundo…»

Cortesia de wikipedia

Dedicatória

A Primeira Palavra
Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a Primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo.

Elogio da Amada
Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida
secreta cheia de pensamentos, isenta de cuidados.
Vem sentada na nova Primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo.
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe.
A amada é bem a infância que vem ter comigo.
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortos como antes nunca mais.
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa indiferença.
Os nossos átrios são para os seus pés solitários.
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias as nossas mãos vazias.
A dor é nela até que deus começa,
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor.
Que importa sermos de uma só manhã e não haver
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é Primavera?
 
Condição da Terra
A minha amada chega no ar dos pinhais
cingida de resina vária como o cedro
e a maresia. Levanta-se lábil
e compromete solene o séquito da aurora.
Ou vem sobre os rolos do mar
cheia de infância pequena de destino.
Também a trazem às vezes aves como a pomba
que os mercadores ouviram
em países distantes. Tem brilhos
nos olhos de veado como se buscara
a grande fonte das águas.
Que nome tem a minha amada?
Como chamá-la se nenhum
conceito a contempla?
Em que palavra envolvê-la?
A minha amada não é da raça de estar
como o homem posta sobre a terra.
Que pés lhe darão
este destino de serem
mais ágeis do que nós os sonhos?
Ombro como o meu será lugar para ela?
Que anjo em mim a servirá?
Ai eu não sei como recebê-la
Eu sou da condição da terra
que tacteio de pé. Quase árvore
não me vestem convenientemente as estações
nem me comenta a sorte
o canto pontiagudo dos pássaros.

Vem domesticamente minha amada.
Receber-te-ei aquém dos olhos
com este humilde cabedal de dias.

Mas basta que venhas quando eu diga
do alto de mim próprio sim à terra.

Poemas de Ruy Belo, in ‘Aquele grande rio Eufrades, Dedicatória’, 1961

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