sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Eu Subi a Grande Muralha. Jaime Roseira. «As portas da China estão abertas aos estrangeiros, incluindo os Portugueses. Desembarcou com um cartão de estudante, disposto a trocar dinheiro no câmbio negro e aproveitar a ingenuidade sincera que ainda caracteriza os Chineses. Os Portugueses não viajaram tudo no século XVI e a China fica mais perto do que a Lua»

Jiuquan, uma vendedora de gelados, disfarçada de mulher invisível
jdact

As portas da China estão abertas aos estrangeiros, incluindo os Portugueses. O autor desembarcou com um cartão de estudante, disposto a trocar dinheiro no câmbio negro e aproveitar a ingenuidade sincera que ainda caracteriza os Chineses. As personagens são imaginárias, mas as situações rigorosamente verdadeiras. A China é suficientemente criativa para dispensar a ficção. O livro pretende servir como um guia de viagem e mostrar que pode ser fácil e barato, acabando com a principal desculpa para não ir. Os Portugueses não viajaram tudo no século XVI e a China fica mais perto do que a lua. É o maior espectáculo do mundo, em cena há dois mil anos, com um bilião de figurantes presentes todos os dias para representar o papel das suas vidas’. In Jaime Roseira.

Hong Kong
«Cruzaram a baía cinzenta à procura da pista no meio dos arranha-céus. Rasando a água o avião abriu caminho pelo aglomerado de casas incaracterísticas da zona residencial. Nada tornava evidente que a China ficava ali mesmo ao lado. A Pérola do Oriente cristalizara nos contornos de uma imagem exótica que exigia materialização, como se fosse possível um paraíso de cinco milhões de habitantes concentrados em pouco mais de um quilómetro quadrado.
Pelo trânsito denso, não se lembravam que os tivessem alertado para a imagem de congestionamento que os apanhava de surpresa. O autocarro virou na Nathan Road, espinha dorsal que alinha as ruas e os homens de Kowloon. Forrada de lojas, a avenida é um imenso centro comercial onde os anúncios luminosos se debruçam como trepadeiras luxuriantes sobre a faixa de circulação. Suspensos dos altos edifícios, transformam Hong Kong numa feira popular de néon vertical onde é Natal todo o ano e as luzes comunicam ao passante a alegria de um brilho fugaz. Foi a vista do primeiro andar do autocarro que aos poucos os reconciliou com a cidade.
João olhou a multidão escura e anónima que enchia os passeios com o movimento cruzado de duas massas compactas. Com o cortejo interminável de montras, descobriu em cada vulto um citadino igual aos de qualquer urbe industrial. Vir encontrar o Ocidente tão longe, escondido no meio da Ásia, trouxe-o de novo para uma disposição depressiva. Hong Kong revelava-se uma caixa de esferovite a flutuar no Mar da China, atulhada de maquinaria electrónica e todos os contrabandos do Ocidente ao preço mais baixo do mundo.
Era a Disneylândia do comércio, o reino da caixa de cartão, e o desapontamento de João teria continuado se não fosse o sinal do condutor para descerem. Passeando numa China Town à escala natural, Rita sentia-se feliz. Hong Kong acendera para ela todas as luzes e nem o frio cortante do anoitecer lhe diminuía o prazer de estar enfim na China, ou pelo menos no meio de Chineses.

Oitenta dias à volta na China, soltos como pássaros numa gaiola com o tamanho de um continente, João e Rita arrancaram as raízes à beira-mar plantadas para percorrer um itinerário romanceado que conta a China. Vendo-a desdobrar-se como um rolo pintado, subindo a Grande Muralha e realizando a viagem dos anos oitenta, o roteiro de dezasseis mil quilómetros descreve trinta cidades e deixa-se surpreender pela sensação de descoberta que a China proporcionou aos primeiros visitantes depois de meio século de isolamento’.

Aproximando-se de João segurou-lhe na mão e respondeu ao apertar intenso com que ele recebeu os seus dedos, esquecido da apreensão que sentia. Se não fosse a mochila ter-lhe-ia passado o braço à volta do pescoço e beijado com paixão. Beijar Rita no meio do néon de Hong Kong, agora que a ideia lhe tinha surgido, tornou-se uma necessidade imperiosa mas com as mochilas iria sair desajeitado e guardou o beijo contrariado para quando fossem jantar.
Quase no fim de Nathan Road, Chunking Mansions é um conglomerado de edifícios onde à mistura com escritórios, comércios e habitações superlotadas, alguns apartamentos foram forrados a beliches. Nestes quartos interiores onde uma noite de sossego se adquire por poucos dólares, vêm arrumar-se os Ocidentais que de mochila desembarcam na cidade. João perguntou esperançado se havia quartos de casal e dispunha-se a procurar outro sítio mas a determinação implacável de Rita em ficar sempre no alojamento mais barato forçou-o a mudar de ideia. O melhor que arranjaram foi camaratas em extremos opostos do mesmo quarto e não seria nessa noite nem nas seguintes que a componente romântica da estada em Hong Kong teria lugar para materialização.
Com o fechar das lojas as ruas esvaziaram, deixando passar livremente o frio intenso de Março que depressa os trouxe de volta ao hotel. Virados para a televisão, o grupo de refugiados ocidentais suportou um após outro os débeis programas, afinal os mesmos que nos países de cada um. Só os anúncios em chinês lhes recordavam que estavam na China.


Vista de Kowloon a ilha é um fabuloso horizonte eriçado de betão, como um anel luminoso que se esbate contra as colinas íngremes e descarnadas. De noite, brilhando ao longe como um clarão, atrai aos milhares as populações fronteiriças de camponeses que pensam escapar ao rigor de uma vida de trabalho. Na impossibilidade de obter passaporte e não podendo sem consequências regressar ao continente, a hipótese de sair não existe para a maioria. Desprevenidos, vêm acumular-se numa prisão cujos muros têm o contorno sinuoso do Mar da China, condenados a circular sem descanso como no recreio de uma cadeia». In Jaime Roseira, Eu Subi a Grande Muralha, Um Guia Romanceado da China, Edição do Autor, Viseu-Tipografia Guerra, Lisboa, 1988.

continua
Cortesia de Jaime Roseira/JDACT