sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Etnografia de Os Lusíadas. Alfredo Reis Borges. «As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas»

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Breve questionário etnográfico
«Não se trata rigorosamente de um questionário, isto é, de uma compilação metódica de perguntas como interessa a este tipo de método de investigação etnográfica. É, pois, um interrogatório oral baseado no método de inquérito directo, bastante empírico sob o aspecto etnográfico e de reduzidos requisitos. As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas.
Quando da chegada à ilha de Moçambique apareceram uns pequenos batéis e os marinheiros interrogavam- se:

Que gente será esta? (em si deziam)
Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
(I,45)

E antes de completamente ancorados já subiam os negros pelas cordas da nau capitania onde foram bem recebidos pelo capitão (Vasco da Gama) e

Comendo alegremente, perguntavam,
pela Arábica língua, donde vinham,
quem eram, de que terra, que buscavam,
ou que partes do mar corrido tinham.
……………………………
(I,50)

Por via do intérprete Fernão Martins foi dada a seguinte resposta:

……………………………………….
Os Portugueses somos do Ocidente,
imos buscando as terras do Oriente.
(I,50)

Do mar temos corrido e navegado
toda a parte do Antárctico e Calisto,
toda a costa Africana rodeado,
diversos céus e terras temos visto.
……………………………..
(I,51)

.....................buscando andamos
a terra Oriental que o Indo rega;
………………………………
(I,52)

E depois destas respostas disseram:

…………………………
Mas já razão parece que saibamos
(se entre vós a verdade não se nega)
Quem sois, que terra é esta que habitais?
……………………………………
(I,52)

Responderam:

Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
estrangeiros na terra, Lei e nação;
que os próprios são aqueles que criou
a Natura, sem Lei e sem Razão.
Nós temos a Lei certa que insinou
o claro descendente de Abraão,
que agora tem do Mundo o senhorio,
a mãe Hebreia teve e o Pai Gentio.
(I,53)

Esta Ilha pequena que habitamos
É em toda esta terra certa escala
de todos os que as ondas navegamos,
de Quíloa, de Mombaça e de Sofala.
E, por ser necessária, procuramos,
como próprios da terra, de habitá-la;
e, por que tudo enfim vos notifique,
chama-se a pequena Ilha: Moçambique'.
(I,54)

E até ao dia seguinte, enquanto aguardavam a visita do sultão,

…………………………………….
Qualquer então consigo cuida e nota
na gente e na maneira desusada,
…………………………………….
(I,57)

Recebe o Capitão alegremente
 Mouro e toda a sua companhia:
………………………………..
(I,61)

Os marinheiros curiosos,

……………………………………
Notando o estrangeiro modo e uso
e a linguagem tão bárbara e enleada.
Também o Mouro astuto está confuso,
olhando a cor, o trajo e a forte armada;
e, perguntando tudo, lhe dezia
se porventura vinham de Turquia.
(I,62)

E mais lhe diz, também, que ver deseja
os livros de sua Lei, preceito ou fé,
pera ver se conforme à sua seja,
ou se são dos de Cristo, como crê;
e, por que tudo note e tudo veja,
ao Capitão pedia que lhe dê
mostras das fortes armas de que usavam,
Quando cos inimigos pelejavam.
(I,63)

Responde o valeroso Capitão,
por um que a língua escura bem sabia:
…………………………………
(I,64)

A Lei tenho d'Aquele a cujo império
obedece o visibil e invisibil,
aquele que criou todo o Hemisfério,
tudo o que sente e todo o insensibil;
que padeceu desonra e virtupério,
sofrendo morte injusta e insofribil,
e que do Céu à Terra, enfim, deceu,
por subir os mortais da Terra ao Céu.
(I,65)

Deste Deus-Homem, alto e infinito,
os Livros que tu pedes não trazia,
que bem posso escusar trazer escrito
em papel o que na alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
comprido esse desejo te seria,
como amigo as verás, porque eu me obrigo
que nunca as queiras ver como inimigo.
(I,66)
[…]

As estrofes aqui reunidas revelam bem a curiosidade inata que leva os Portugueses a interrogar-se a respeito das gentes que viam de costumes tão estranhos. Pela sua clareza não nos deteremos muito sobre as suas análises, fazendo apenas breves referências julgadas necessárias a algumas delas. Na ilha de Moçambique formulam o seguinte questionário oral, por quererem saber toda a verdade:
  • 1. Quem sois?
  • 2. Que terra é esta que habitais?
  • 3. Qual é a vossa Lei (religião)?
  • 4. Que Rei (organização social e política)?
In Alfredo Reis Borges, Etnografia de Os Lusíadas, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1996.

continua
Cortesia de SG de Lisboa/JDACT